Gisèle Pelicot – Um caso para não esquecer
por Camila Koenigstein
Há quase cinco anos escrevi meu primeiro artigo para o Jornal GGN, e o tema era: “As mulheres e a pandemia – uma reflexão sobre a violência”. Naquele momento, muitas mulheres estavam sofrendo violência doméstica em decorrência do isolamento, o que de certa forma obrigava que políticos de diversos países buscassem medidas que pudessem facilitar as denúncias. Nesse período, na América Latina, as mulheres enfrentavam uma pandemia paralela, pois, além do medo do contágio, vivenciavam o pânico de ficar confinadas em casa e sofrer alguma espécie de abuso.
“Na América há uma ascensão de mortes alarmantes. Só na Argentina, nos dez primeiros dias de quarentena foram registrados doze feminicídios, e tal número não é um caso isolado dentro do continente.”
A pandemia, de certo modo, revelou o lar como lugar de opressão e mostrou que, independentemente da classe social, a violência faz parte da esfera mais íntima da vida das mulheres.
Passados quase cinco anos, pouco ou nada mudou em relação aos índices de violência. No entanto, o que notamos foi o número de mulheres que começaram a relatar, principalmente nas redes sociais, os variados tipos de agressão que sofrem diariamente e como de alguma maneira a sociedade ainda trata com naturalidade o problema.
Neste último ano, houve uma enxurrada de denúncias, mas, como de costume, a responsabilidade recaiu sobre os ombros femininos. Na Argentina, o ex-presidente Alberto Fernández foi indiciado em agosto por ameaças e ferimentos graves contra a ex-primeira-dama Fabiola Yáñez. Ela expôs todas as faces ocultas de um homem que no período da pandemia chegou a aparecer publicamente para defender medidas que visavam proteger as mulheres argentinas. Golpes, insultos, ameaças faziam parte da vida diária de Fabíola, porém, na bolha das redes sociais, milhares de pessoas, por razões políticas ou visões distorcidas, duvidavam do que ela relatava, ainda que não faltassem provas.
Conforme documentos judiciais, os episódios de violência ocorreram entre 2021 e 2022, quando Yáñez teria sido coagida a não denunciar os abusos. Fotos que mostram hematomas e trocas de mensagens entre o casal foram encontradas no celular de María Cantero, ex-secretária de Yáñez, e usadas como provas. “Ele é acusado de agredi-la no braço e no olho direito”, descreve o relatório.
No entanto, desde agosto há cada vez menos divulgações sobre o caso, um silêncio intencional e assustador, principalmente quando se leva em conta que tais atos foram cometidos pelo ex-presidente, tema que deveria estar em pauta constantemente. Na esfera política não são incomuns ocorrências como essa. No Brasil, o ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida está sendo investigado por abusos que supostamente cometeu durante o período em que exerceu o cargo. Embora exista uma quantidade significativa de denúncias, o caso é amplamente questionado, pois há uma espécie de manto construído sobre bases ideológicas que não permitiriam que tudo isso acontecesse, considerando-se especialmente toda a reputação e prestígio que o ex-ministro conquistou nos últimos anos. O caso de Silvio é emblemático, pois evidencia a existência de uma deficiência nas análises sobre o machismo estrutural, o poder e a violência.
Há um certo grau de dificuldade em dissociar a orientação política e ideológica de atos de violência. Cabe recordar todas as atrocidades proferidas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que jamais deixou de lado sua misoginia. Atualmente, na Argentina, o presidente Javier Milei fechou de forma definitiva o Ministério das Mulheres. Segundo o presidente, tal ministério atendia a questões ideológicas e políticas vinculadas à gestão anterior, o que não correspondia à finalidade pela qual a pasta foi criada.
No último dia 20 de dezembro, Gisèle Pelicot, 72 anos, conseguiu a condenação de seu ex-marido Dominique Pelicot, após dez anos de abusos. A vida que parecia tranquila foi transformada depois da prisão dele, em 2020, quando Dominique havia assediado sexualmente três mulheres em um supermercado na pequena cidade de Manzan, no sul da França.
As denúncias levaram a polícia a investigar Pelicot e, durante a investigação, foram encontrados vídeos que mostravam Gisele sendo violada diversas vezes – no total, ela sofreu mais de 80 violações, cometidas por homens que viviam na região.
“Não há agrupamento discernível por idade, trabalho ou classe social. As duas características que todos compartilham são o fato de serem homens e terem feito contato em um fórum ilegal de bate-papo online chamado Coco, conhecido por atender swingers e também por atrair pedófilos e traficantes de drogas. Segundo os procuradores franceses, o site, que foi encerrado no início deste ano, foi citado em mais de 23 mil denúncias de atividades criminosas.”
O julgamento, que já ganhou ares históricos, principalmente pela posição adotada pela defesa da vítima, que permitiu que fosse aberto e que todos pudessem acompanhar de maneira efetiva, gerou comoção na sociedade francesa. A luta de Gisele terminou nesta semana com a condenação de Dominique Pelicot a vinte anos de prisão, pena máxima para tal crime no país.
O caso expõe toda a complexidade que envolve o tema, e evidencia que todo ato de abuso é um ato de soberania, uma forma de exercício de poder que de alguma maneira precisamos erradicar.
No entanto, nos aproximamos do fim do ano e os índices de violência crescem e são alarmantes. Segundo o anuário da Organização das Nações Unidas (ONU) publicado no dia 25 de novembro, mais de 51 mil mulheres foram mortas por seus parceiros ou membros da família em 2023.
Segundo a diretora executiva da ONU Mulheres, Sima Bauhaus:
“A violência contra as mulheres e meninas pode ser evitada. Necessitamos de leis sólidas, maior compilação de dados, maior responsabilidade governamental, uma cultura de tolerância zero e mais financiamento para as organizações pelos direitos das mulheres e dos organismos institucionais.”
Há um longo caminho a percorrer, e todos os caminhos parecem complexos. Ainda assim, exemplos como o de Gisèle Pelicot mostram que o silêncio já não é uma opção. Que a indignação é uma ferramenta potente quando pensamos em transformações efetivas.
Que suas palavras ecoem na mente de homens e mulheres de todo o mundo e que a vergonha realmente passe para o outro lado, assim como a responsabilidade de séculos de violência sistemática.
Fontes:
Camila Koenigstein – Graduada em História pela Pontificia Universidade Catolica- SP, pós – graduada em sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Política -SP. Concluiu o mestrado em Ciências com ênfase em America Latina e Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA) em 2018. Em 2023 publicou seu primeiro livro de poesia, intitulado Com quantos poemas evitamos a loucura, pela Editora Patuá.
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