A grandeza da Foz do Amazonas.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

APRESENTAÇÃO. – O maior tesouro natural à disposição dos brasileiros não são as reservas de minério de ferro ou petróleo. Muito menos as reservas de sal ou lítio. Em termos bastante simples e fundamentais, ouso dizer que o maior tesouro natural à disposição dos brasileiros é o nosso suprimento de água doce. Sejam os numerosos e diversificados reservatórios subterrâneos existentes em Minas Gerais [1], seja a gigantesca e inigualável bacia amazônica. O propósito deste artigo é chamar a atenção para a grandeza da Foz do Amazonas, uma obra-prima da natureza a respeito da qual a opinião pública pouco ou nada conhece. E isso é um problema, sobretudo diante do olho gordo de petroleiras e mineradoras, que insistem em furar o chão atrás de lucros e dividendos, comprometendo assim o bom funcionamento de sistemas naturais pelo mundo afora. Contra esse estado de coisas, mais e melhores informações sobre a dinâmica dos sistemas fluviais deveriam vir à tona mais frequentemente.

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Para os propósitos deste livro, podemos dizer que há dois tipos de água em nosso planeta – salgada e doce [2]. 97,5% de todo o suprimento mundial estão armazenados em corpos de água salgada. Os 2,5% restantes estão distribuídos em uma variedade de corpos de água doce, incluindo as geleiras (1,7%), aquíferos (0,75%), gelo subterrâneo (= permafrost) (0,02%) e depósitos de águas superficiais, como rios, lagos e represas (0,01%) [3].

1. O CICLO HIDROLÓGICO.

A diferença entre os percentuais é gigantesca. E pode ser traduzida da seguinte maneira: o oceano global é o principal compartimento do ciclo hidrológico. Vale lembrar que, em termos de fluxos, cada compartimento tem a sua dinâmica interna própria, como ocorre no ciclo do carbono (Cap. 4). Diferenças no tempo de residência das moléculas, por exemplo, ilustrariam isso, como anotaram Barry & Chorley (2013, p. 78) [4]: “O tempo de residência médio da água dentro desses reservatórios varia de centenas ou milhares de anos para os oceanos e gelo polar a apenas 10 dias para a atmosfera.

No ciclo da água, o grosso dos fluxos depende de dois processos, evaporação e precipitação (chuva, neve etc.). Nos oceanos, a evaporação supera a precipitação, pois uma parcela da umidade que se acumula no ar é empurrada para os continentes, onde se precipita. Em terra firme, a precipitação supera a evaporação [5]; todavia, o balanço anual se mantém em ordem porque o excesso retorna aos oceanos por meio do escoamento (rios etc.).

2. A ORIGEM DA ÁGUA.

No âmbito do Sistema Solar, nenhum dos nossos vizinhos (em especial planetas e satélites; ver Cap. 6) é provido de água como nós somos.

Alguns autores sustentam a hipótese de que a água que há na Terra veio do espaço, a posteriori (i.e., após o término do processo de acreção que deu origem ao planeta). De acordo com esse ponto de vista, inúmeros bombardeios ocorridos ao longo de milhões de anos teriam hidratado a Terra – digo: ao colidirem contra o planeta, objetos ricos em água vindos do espaço (e.g., cometas ou certos tipos de asteroides) teriam deixado aqui o seu conteúdo [6].

Outros, porém, defendem a hipótese de que a água já fazia parte da matéria-prima que deu origem à Proto-Terra. Esse segundo ponto de vista ganhou destaque recentemente em razão da descoberta de que certas rochas oriundas do interior da Terra são ricas em água. A descoberta também colocou em xeque a ideia de que todo o suprimento de água existente no planeta estaria armazenado em depósitos superficiais ou pouco profundos [7].

3. BACIAS HIDROGRÁFICAS.

A distribuição e o tamanho dos corpos de água doce variam muito, tanto entre os continentes como dentro de cada um deles. Uma coisa, porém, é certa: rios, córregos e lagos não funcionam isolados; a regra é eles estarem interligados, formando redes de conexões. Bacia hidrográfica é o nome que se dá ao território ocupado por cada uma dessas redes.

Talvez em nenhum outro lugar do planeta o papel e a relevância dessas redes na dinâmica planetária sejam tão evidentes como na bacia amazônica. Ocupando uma área de 6,1 × 106 km2, o equivalente a 34% do continente sulamericano (ver Cap. 1), a bacia amazônica se estende por oito países e meio [8]. Mais da metade da bacia (60,3%) está em território brasileiro. Os 39,7% restantes estão no Peru (11,3%), Colômbia (7%), Bolívia (6,9%), Venezuela (6,7%), Guiana (3%), Suriname (2,1%), Equador (1,5%) e Guiana Francesa (1,2%).

Trata-se da maior de todas as bacias do mundo, abrigando alguns dos rios mais caudalosos do planeta – e.g., Tapajós, Xingu, Negro e Madeira; além, claro, do mais caudaloso de todos. Veja: a vazão média do rio Amazonas foi estimada em 2,09 × 105 m3 s–1, ou 2,09 × 10–4 km3 s–1 [9]. É muita água. Basta dizer que, para superar esse valor, é necessário somar a descarga dos nove rios que vêm em seguida na lista dos mais caudalosos do mundo.

3.1. A cor das águas.

A bacia amazônica ou, mais especificamente, a porção brasileira dela é um “gigantesco domínio de terras baixas florestadas, disposto em anfiteatro, enclausurado entre a grande barreira imposta pelas terras cisandinas e pelas bordas dos planaltos Brasileiro e Guianense” (Ab’Sáber 2003, p. 65). A despeito do relevo predominantemente plano, desprovido de montanhas, há muita variação entre os corpos d’água. De acordo com Junk (1983, p. 45): “[o]s lagos que acompanham os grandes rios, e que são típicos para áreas alagáveis (várzeas e igapós), faltam nas áreas não inundáveis (terra firme), onde igarapés e pequenos rios caracterizam a paisagem”. Além disso, “[r]ios com água barrenta ocorrem tanto quanto rios com água preta ou cristalina” (idem, p. 45).

Parte dessa diversidade de aspecto é ilustrada pelos diferentes tipos de rios encontrados na região – e.g., rios de água branca, de água preta ou de água cristalina. Nas palavras de Junk (1983, p. 50-3):

Água branca. Vários rios da região amazônica, como o próprio Amazonas, Purus, Madeira e Juruá, nascem na região andina e pré-andina. Os processos de erosão nos Andes são muito intensivos e a carga de sedimentos é muito alta, provocando a cor branca da água. Em áreas de baixa correnteza, os sedimentos são depositados e a transparência da água aumenta, enquanto que em outras áreas a correnteza invade os barrancos recebendo novos materiais para carregar. Perto de Manaus, um litro de água do Amazonas contém cerca de 0,1 g de sedimentos. […]

Água preta. Ao contrário dos rios de água branca, o rio Negro e outros rios de água preta (rio Urubu) não transportam material em suspensão em grandes quantidades. Rios de água preta nascem nos escudos arqueados das Guianas e do Brasil Central ou nos sedimentos terciários da bacia amazônica, que tem um relevo suave e pouco movimentado, onde os processos de erosão são pouco intensos e reduzidos ainda pela densa [floresta] pluvial. Consequentemente, a carga de sedimentos é baixa e os rios são transparentes. […] [E]ncontram-se na sua área de captação enormes florestas inundáveis (igapós) e o material orgânico produzido pelas florestas, tais como folhas, galhos etc., cai na água e decompõe-se. Vários produtos de decomposição são solúveis e de coloração marrom ou avermelhada (ácidos húmicos e fúlvicos), provocando a cor escura da água preta. […]

Água clara. Os rios de água clara são transparentes e com cor esverdeada, transportando somente poucos materiais em suspensão. A análise química mostra uma heterogeneidade relativamente grande destes rios e principalmente dos igarapés em relação ao pH e à condutividade elétrica. […] [Essas] […] águas transparentes, pouco coloridas, com caráter químico variável, [necessitam] de estudos adicionais para sua classificação definitiva.”

3.2. O chá da Terra.

Descontando-se os números grandiosos, o que se passa na bacia amazônica não é muito diferente do que se passa em outras bacias mundo afora. Um exemplo: a nascente dos grandes rios costuma estar situada em terrenos elevados, montanhosos e distantes do litoral; no percurso até a foz, as águas lavam e interagem (física e quimicamente) com o substrato; materiais solúveis se desprendem ou são capturados; parte do que é capturado aqui é depositado logo ali (e.g., na próxima curva); no cômputo final, porém, muitos materiais só desembarcam quando as águas desembocam no mar.

Esse processo de assoreamento do substrato está a ocorrer em todos os rios do mundo, há milhares de anos. E ajuda a explicar a presença de tantos sais dissolvidos na água do mar – e.g., íons cloreto (Cl), sódio (Na+) e sulfeto (S–2). É a presença desses íons que torna a água salgada para nós.

Na caracterização de Garrison (2010, p. 129):

“O oceano é uma espécie de ‘chá da Terra’ – todo elemento presente na crosta e na atmosfera está também presente no oceano, embora, algumas vezes, em quantidades extremamente pequenas. Apenas 14 elementos têm concentrações […] maiores que uma parte por milhão (ppm). Os elementos presentes em quantidades menores que 0,001‰ (1 ppm) são conhecidos como elementos-traço.”

Sim, muitos materiais chegam ao mar após terem sido carreados por rios ou córregos. Mas o assoreamento não explica tudo. O lado menos conhecido dessa história tem a ver com o assoalho oceânico. Pode anotar aí na sua agenda: uma parcela expressiva dos sais presentes na água do mar é oriunda dos gases que são liberados por fendas ou vulcões submarinos [10].

4. A GRANDEZA DA FOZ DO AMAZONAS.

Para concluir, vamos olhar para a Foz do Amazonas de uma perspectiva, digamos, mais familiar e compreensível. Para começar, vamos calcular o volume de água que o rio despeja no mar a cada ano. Assim, calculamos: (vazão média por segundo) × (total de segundos em um ano).

Em números:

(2,09 × 10–4 km3 s–1) × (60 × 60 × 24 × 365,25 s),

efetuando as operações e simplificando, obtemos

6,5955384 × 103 km3.

Arredondando para o inteiro mais próximo, lê-se: seis mil quinhentos e noventa e seis quilômetros cúbicos. Dá para encher um bocado de caixas d’água, convenhamos. Caso o leitor não esteja conseguindo visualizar essa gigantesca montanha de água, pare e pense sobre as duas ponderações feitas a seguir. Em primeiro lugar, caberia dizer que o volume de água que todos os rios do mundo despejam nos oceanos a cada ano é algo da ordem de 3,7288 × 104 km3. O rio Amazonas sozinho responde, portanto, por quase um quinto (~ 18%) do total mundial.

Em segundo lugar, pense no seguinte: a vazão do Amazonas é suficiente para encher 209 mil caixas d’água de 1.000 L em apenas um segundo (ou 418 mil caixas de 500 L), lembrando que 1.000 L equivalem a 1 m3 de água. Se isso ainda não foi o suficiente para impressioná-lo, confira as comparações mostradas na tabela (Tab. 2) que acompanha este artigo. Veja como o rio levaria pouco mais de um dia para encher toda a represa de Três Marias e menos de 13 segundos para fazer transbordar o estádio do Maracanã [11]. Em compensação, seriam necessários 208,3 mil anos para encher o oceano global [12]. Este último resultado é particularmente instigante. Seja porque nos lembra do abismo que há entre os suprimentos de água doce e salgada, seja porque nos lembra da necessidade de criar freios contra o desperdício e a degradação. Em suma: nossas reservas são as maiores do mundo, mas não são infinitas.

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NOTAS.

[*] Este artigo foi extraído e adaptado do livro O tamanho do mundo & outras conjecturas (no prelo). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, pacotes com os quatro livros do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] Um registro: das 23,4 mil cavernas cadastradas em todo o território brasileiro (2024), ~47% estão em Minas Gerais. Uma inferência: suspeito que concentração semelhante seja observada na distribuição das quedas d’água (cataratas, saltos e cascatas). Um comentário lateral: na definição de cavidade natural subterrânea, faz-se uma distinção entre abrigo, caverna e abismo (para detalhes, v. sítio do ICMBio). No abrigo, a altura da entrada é maior que o seu desenvolvimento linear; na caverna, a altura da entrada é menor que o desenvolvimento linear; e no abismo, o desenvolvimento linear da cavidade é predominantemente vertical.

[2] Estou a me referir à água presente na crosta. Ao contrário da água do mar, que de fato é salgada, a água dos rios não é propriamente doce – em muitos casos, trata-se apenas e tão somente de água potável. A propósito, para fins de reflexão em sala de aula, deixo aqui uma provoção: por que náufragos morrem de sede em alto-mar?

[3] Percentuais extraídos de Garrison (2010). Para um balanço detalhado das descargas fluviais, v. Dai & Trenberth (2002). As águas que estão para além dos domínios jurisdicionais de qualquer país, são ditas águas internacionais. Na prática, porém, trata-se quase que de uma terra de ninguém – e.g., o descarte de refugos por parte de cargueiros e transatlânticos é comum.

[4] Em média, a quantidade de vapor d’água que está estacionada na atmosfera, em qualquer dia do ano, é suficiente para alimentar 25 mm de chuva sobre a superfície do planeta durante 10 dias. Essa quantidade é chamada de água precipitável (v. Barry & Chorley 2013).

[5] Ou, mais propriamente, a evapotranspiração – i.e., a perda de água do solo e outras superfícies por evaporação somada à perda pela transpiração de plantas e outros organismos.

[6] Adotando a estimativa de que a “parte sólida de um cometa típico (núcleo) tem aproximadamente 10 km de diâmetro” (Comins & Kaufmann 2010, p. 292), seriam necessários ~328 mil deles para produzir o volume atual do oceano global. (Ou menos, visto que os cometas diminuem de tamanho com a idade.)

[7] Para detalhes técnicos, v. Pearson et al. (2014).

[8] O meio é apenas uma brincadeira com a Guiana Francesa, pois se trata de um departamento ultramarino da França, não propriamente de um país autônomo. Apenas quatro países sulamericanos não são alcançados pela bacia amazônica: Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai.

[9] Para detalhes, v. Molinier et al. (1996); para um balanço das bacias hidrográficas do planeta, Vörösmarty et al. (2000) e Dai & Trenberth (2002).

[10] Para detalhes, v. Garrison (2010).

[11] Após examinar a tabela, pare e pense: quanto tempo seria necessário para o Amazonas inundar a sua cidade (até uma altura, digamos, de 10 m)? (Dica: comece descobrindo a área territorial do seu município.)

[12] A conta a ser feita é: (volume do oceano global) / (vazão do rio). Sabendo que o primeiro vale 1,374 × 109 km3 e o segundo, 2,09 × 10–4 km3 s–1, nós então calculamos (1,374 × 109 km3) / (2,09 × 10–4 km3 s–1), de onde obtemos (1,374 / 2,09) × 1013 s = 6,57416 × 1012 s. Como 1 ano tem 60 × 60 × 24 × 365,25 (= 31 557 600) segundos, para expressar a resposta em anos, fazemos (6,57416 × 1012) / (3,15576 × 107), de onde obtemos 2,083226 × 105 a.

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REFERÊNCIAS CITADAS.

+ Ab’Sáber, A. 2003. Os domínios de natureza no Brasil. SP, Ateliê.

+ Barry, RG & Chorley, RJ. 2013 [2010]. Atmosfera, tempo e clima, 9ª ed. P Alegre, Artmed.

+ Comins, NF & Kaufmann, WJ, III. 2010 [2008]. Descobrindo o Universo, 8ª ed. P Alegre, Bookman.

+ Dai, A & Trenberth, KE. 2002. Estimates of freshwater discharge from continents: latitudinal and seasonal variations. Journal of Hydrometeorology 3: 660-87.

+ Junk, WJ. 1983. As águas da região amazônica. In: Salati, E & mais 3, orgs. Amazônia: desenvolvimento, integração e ecologia. SP, Brasiliense & CNPq.

+ Garrison, T. 2010 [2006]. Fundamentos de oceanografia, 4ª ed. SP, Cengage.

+ Molinier, M & mais 3. 1996. Les régimes hydrologiques de l’Amazone et de ses affluents. In: Chevallier, P & Pouyaud, B, eds. Hydrologie tropicale: Géoscience et outil pour le développement. Paris, IAHS.

+ Pearson, DG & mais 11. 2014. Hydrous mantle transition zone indicated by ringwoodite included with diamond. Nature 507: 221-4.

+ Ricklefs, RE. 2003 [2001]. A economia da natureza, 5ª ed. RJ, G Koogan.

+ Vörösmarty, CJ & mais 3. 2000. Global system of rivers: Its role in organizing continental land mass and defining land-to-ocean linkages. Global Biogeochemical Cycles 14: 599-621.

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Last Update: 18/12/2024