O site Poder 360 anunciou na semana passada a derrocada dos Correios.
Usou um recurso velho, típico da mídia norte-americana, seguida pela nossa, quando anunciava que em determinado país contrário aos seus interesses estava ‘faltando papel higiênico’.
Pronto: ali estava o gatilho perfeito para explorar o medo social e as ansiedades da população. O dano psicológico era certo.
A metáfora do papel higiênico foi substituída pelo site, porta-voz do ‘mercado’, com a expressão ‘vale peru’.
É assim mesmo, ‘vale peru’, que os servidores da estatal de logística brasileira, criada em 1663, chamam um benefício de fim de ano, no valor de R$ 2,5 mil, pagos em duas parcelas conforme acordo trabalhista, em forma de ticket alimentação, para não incidir em direitos na folha de pagamento.
A Folha embarcou. Deu a matéria com o seguinte título, não sem antes informar, no primeiro parágrafo, que a estatal acumula prejuízos: ‘Correios pagam R$ 200 milhões em ‘vale-peru’ para funcionários após acordo com sindicato’.
A tabelinha serviu para formar a tempestade perfeita.
Uma estatal modorrenta, que dá prejuízo ano sim, outro também, gasta uma fortuna para alimentar, na forma de ‘vale peru’, funcionários preguiçosos e inoperantes.
O que nem a Folha, muito menos o Poder 360 te contam é o que as evidências apontam por trás dessa história.
Vamos lá: em sua trajetória ao longo dos séculos os Correios acompanharam de perto o crescimento e a modernização do Brasil, tornando-se símbolo de confiabilidade e unidade em um país de dimensões continentais e grande diversidade regional.
Sempre foram mais do que uma simples estatal de logística; representaram um elo de conexão entre os diferentes estados e as inúmeras comunidades espalhadas pelo território nacional.
Desenvolveu uma rede de atendimento capaz de acessar os locais mais remotos, oferecendo serviços essenciais à população.
É essa capilaridade que dá à estatal, conforme reiteradas pesquisas, índices altíssimos de satisfação e confiança pelos usuários.
Ademais, é importante dizer da pujança desse segmento.
Logística e entregas é um dos mais dinâmicos e aquecidos no cenário econômico atual, no Brasil e no mundo.
Um mercado que tem experimentado um crescimento exponencial, impulsionado por mudanças nos padrões de consumo, avanços tecnológicos e a crescente demanda por soluções de entrega mais rápidas.
Representa não apenas uma oportunidade de lucratividade, mas também um campo estratégico crucial para atender às necessidades dos consumidores especialmente com o crescimento explosivo do e-commerce – no Brasil, as vendas online cresceram 27% em 2020, pico da pandemia da Covid-19, e seus índices estão imbicados para cima desde então.
É o caso de perguntar: qual o interesse do Poder 360, seguido da Folha, em desqualificar uma empresa cuja necessidade dos serviços é notória num momento de expansão do negócio e de forma tão chula?
A Fentect, que é a Federação Nacional dos Trabalhadores de Empresas em Correios, Telégrafos e Similares, tem uma resposta bastante plausível: ambos, Poder360 e Folha, estariam inconformados com a interrupção, pelo atual governo, do “processo de sucateamento e manipulação dos números dos Correios” iniciados por Bolsonaro em 2019 com vistas a entregar a estatal, ‘quase de graça’, aos interesses do mercado privado.
Essa também é uma técnica velha, adotada no período da Nova República, notadamente com Fernando Henrique Cardoso após sua primeira eleição para a Presidência, em 1994, período da farra das entregas de setores estratégicos como petroleiras, transporte e infraestrutura, siderurgia, estrutura bancária, energia e, entre outros, as telecomunicações.
A diferença é que naquela época, os chamados ‘barões da mídia’ exerciam um papel de meros apoiadores das iniciativas, com interesses econômicos voltados a verbas de propaganda, empréstimos a juros subsidiados e a possibilidade de flanar junto dos poderosos em banquetes palacianos.
Eram tempos em que, comparados aos atuais, se podia classificar de românticos: você faz, eu apoio e depois a gente vê como fica.
Com as mudanças sociais e econômicas, os negócios de mídia tomaram outra conformação: se a Folha se entregou ao negócio, entre outros, de bens de capital a partir da PagSeguro, para diversificar e ampliar suas receitas, o Poder 360, em inicio de gestação de seus negócios a partir da nova era digital, optou por se juntar a homens de negócios para ampliar as receitas e estreitar suas relações com o mercado.
Uma dessas associações é recente, datando de abril de 2021, conforme anunciado pelo site: a aquisição de 25% do grupo por Frederico Trajano, junto com a mãe um dos donos do Magazine Luiza.
Fernando Rodrigues, até então controlador do site com sua sócia Mariângela Gallucci, saudou a chegada de Fred:
“É muito bem-vinda”, escreveu. “Ele trará sua experiência como empreendedor respeitado e bem-sucedido, com destaque para a área digital. Hoje, veículos de comunicação jornalística precisam ser também empresas de tecnologia. Só assim conseguem melhorar a experiência do leitor em qualquer plataforma. No século 21, nós não temos apenas o desafio de fazer bom jornalismo, mas de facilitar o acesso do público ao que é produzido”.
O novo sócio, apontado como modelo de empreendedor, agradeceu:
“Quero contribuir para que a empresa se fortaleça continuamente, respeitando seus valores, e para que ela possa tirar o maior proveito possível das oportunidades que a tecnologia oferece”, retribuiu Frederico Trajano.
Agora se descobre que no guarda-chuva da empresa-mãe está a Magalog.
Não fosse apenas o braço logístico e de distribuição de produtos da gigante do varejo, a companhia, concorrente direta da estatal, é a menina dos olhos por surfar num mercado pujante, consolidado e promissor.
Detalhe: assim que o governo de Bolsonaro encerrou, como você pode observar na reprodução do comunicado no fim deste texto, a Magalu assentou em seu Conselho de Administração ninguém menos que Floriano Peixoto Vieira Neto, general da reserva que presidiu os Correios nos anos em que o bolsonarismo tentou mas não conseguiu levar a empresa à bancarrota.
Se o casuísmo de gastar energia numa reportagem de recursos humanos, se tratando de um benefício de R$ 2,5 mil em ticket de final de ano, assim oferecido para evitar complicações trabalhistas, vale uma manchete, seja no site ou no jornal, o mesmo precisa valer para a desconfiança em relação aos interesses que podem estar por trás dessa notícia.
Nos tempos em que os Estados Unidos mandavam – e a imprensa brasileira obedecia – espalhar que faltava papel higiênico na casa dos seus inimigos era difícil checar e o dito invariavelmente ficava pelo não dito.
Agora a coisa mudou de figura: já não se fazem mais falácias como antigamente. Ao menos sem o direito do contraditório, regra tão antiga quanto necessária para o exercício do bom jornalismo.