Por Leonardo Silva, cientista político
O anúncio da liberação de R$ 7,5 bilhões em emendas parlamentares pelo governo federal, estrategicamente sincronizado com a semana mais crucial do Congresso Nacional para a aprovação das reformas tributária e fiscal, lança uma luz incômoda sobre o funcionamento do nosso sistema político. A relação entre Executivo e Legislativo, que deveria ser pautada por diálogo e articulação política, transformou-se em um jogo explícito de “toma lá, dá cá”. Esse fenômeno, que chamo de “emendocracia”, redefine o papel do Congresso e escancara o caráter fisiológico que permeia as relações institucionais no Brasil.
Em um momento em que o país precisa avançar com urgência em pautas estruturantes, como a reforma tributária e o arcabouço fiscal, é curioso observar como a liberação bilionária de emendas, uma ferramenta legítima quando utilizada com critério, surge como pré-requisito para que os interesses do governo avancem no Parlamento. A impressão que fica é que, sem emendas, as pautas de interesse do Executivo estariam fadadas ao esquecimento. Esse contexto reflete um Congresso que, hoje, mais demanda do que entrega.
O poder de barganha do Legislativo chegou ao seu ápice, a ponto de transformar o presidencialismo brasileiro em algo que se assemelha ao semipresidencialismo defendido recentemente pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. Ele afirmou que a adoção desse modelo seria uma evolução institucional, mas a realidade é que, na prática, já vivemos algo próximo a isso. O governo federal, cada vez mais refém do Congresso, só consegue aprovar suas pautas prioritárias por meio de acordos financeiros disfarçados de articulação política. O que deveria ser negociação política virou uma mera troca de interesses imediatistas.
O Fim dos Grandes Articuladores
Essa nova realidade política evidencia também a ausência de figuras capazes de articular consensos no Congresso sem recorrer à liberação de recursos públicos. O Brasil já teve grandes articuladores que, com habilidade política e visão de Estado, construíram pontes e viabilizaram mudanças significativas. Líderes como Michel Temer, reconhecido como um pacificador, ou Ulysses Guimarães, o “Senhor Diretas”, eram capazes de conduzir negociações com inteligência e autoridade moral, sem precisar distribuir bilhões em emendas.
Outros nomes, como José Sarney, no Senado, e Renan Calheiros, em diferentes momentos, desempenharam o papel de mediadores em situações de alta tensão política. Eles compreendiam que a política, apesar de suas complexidades, não pode se resumir a interesses pessoais. Infelizmente, essa tradição parece ter ficado no passado.
Hoje, o que temos é um Congresso fragmentado, onde os interesses individuais e regionais se sobrepõem ao interesse nacional. A figura do articulador político, aquele que transita entre as bancadas, escuta os diferentes lados e constrói acordos em nome de um projeto de país, desapareceu. Em seu lugar, surge um sistema onde o diálogo cede espaço a uma negociação financeira descarada, em que votos são trocados por emendas.
O Custo do Fisiologismo
A emendocracia é um reflexo de um fisiologismo que há muito tempo corrói nossas instituições. Deputados e senadores, em vez de pensarem no país, concentram-se em maximizar seus ganhos eleitorais e atender interesses de seus redutos políticos. O Executivo, por sua vez, tornou-se refém dessa lógica, incapaz de aprovar pautas essenciais sem abrir os cofres públicos.
Esse cenário tem implicações graves para a governabilidade e para a qualidade da democracia brasileira. Enquanto bilhões são liberados para satisfazer demandas parlamentares, a sociedade enfrenta uma crise fiscal sem precedentes, com um orçamento cada vez mais engessado e prioridades nacionais relegadas ao segundo plano.
Se antes as reformas eram fruto de diálogo e articulação, hoje elas são compradas. O resultado é um sistema político que se move em função de interesses imediatistas, sem planejamento estratégico e sem pensar no Brasil de longo prazo. Trata-se de um sistema que trabalha para si mesmo, e não para o povo que deveria representar.
Conclusão
O que está em jogo não é apenas a aprovação das reformas tributária e fiscal, mas o futuro do próprio modelo democrático brasileiro. A prática da emendocracia, com sua barganha explícita entre Executivo e Legislativo, mina a credibilidade das instituições e reforça a percepção de que o sistema político brasileiro está quebrado.
É urgente resgatar o papel da política como instrumento de transformação social. Isso passa por limitar o uso das emendas parlamentares como moeda de troca e resgatar o papel do articulador político, aquele que negocia com base no interesse público, e não em interesses particulares.
Até que isso aconteça, continuaremos a ser reféns de um sistema onde a política é decidida a partir do bolso, e não da cabeça. A verdadeira reforma que o Brasil precisa é a reforma do nosso próprio modelo de fazer política, que hoje, infelizmente, se reduz a uma triste e disfuncional emendocracia.
Este artigo não expressa necessariamente a opinião do GGN.
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