Extrema direita não é antissistema e esquerda precisa voltar a “agir como esquerda”

por João Pedro Silva

No atual contexto político brasileiro, um indivíduo que questione a suposta neutralidade da ciência, coloque em xeque a atuação do sistema judiciário, duvide das intenções da indústria farmacêutica, denuncie as manipulações da grande mídia, seja contra a censura à internet, reivindique a liberdade de expressão e, sobretudo, se posicione como “antissistema”, corre o sério risco de ser associado à extrema direita.

E, o que é pior, num passado não tão distante, as características apontadas acima eram inerentemente relacionadas à esquerda.

Tal realidade demonstra dois pontos: a completa adaptação da esquerda ao status quo e a demagogia da extrema direita.  

Em um contexto de crise econômica capitalista como o atual – com todos os impactos negativos na qualidade de vida da população –, é natural que discursos de ruptura com a ordem vigente tenham grande capilaridade. Foi assim com movimentos como o nazismo e o fascismo após a crise de 1929. E não é diferente com a extrema direita contemporânea.

No entanto, como bem aponta uma máxima marxista, o fascismo nada é mais do que a radicalização da chamada “democracia burguesia”. Portanto, o discurso antissistema de nomes como Bolsonaro e Milei é mera retórica em busca de votos. Ambos estão serviço do deus mercado. Mais “sistema” impossível.

Já o posicionamento anticiência da extrema direita não significa uma crítica baseada em argumentos sólidos, contra a suposta neutralidade do campo científico – que, em muitas ocasiões, usando um termo althusseriano, é um aparelho ideológico da dominação burguesa. Trata-se, simplesmente, de ressentimento, haja vista que a estupidez é marca registrada da atual extrema direita brasileira.

Da mesma forma, as críticas da extrema direita ao judiciário e mídia variam de acordo com as circunstâncias. Quando ambos atuavam sistematicamente contra a esquerda (notadamente o PT) eram bem-vistos. Quando passaram a agir contra o bolsonarismo, viraram “extrema imprensa” e “ditadura do judiciário”. Além disso, extrema direita e grande imprensa estão fechadas no apoio ao genocídio do povo palestino.

Ainda nessa linha, a “liberdade de expressão” defendida pela extrema direita não diz respeito à clássica premissa “Não concordo com o que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres”; mas apenas a atacar determinadas minorias. Quando a “expressão” é contra o que prega a extrema direita, seus partidários não se furtam em logo cancelá-la.

Por outro lado, parte considerável da esquerda abandonou a postura anticapitalista; seja substituindo a histórica pauta da luta de classes pelas pautas identitárias, seja embarcando na falaciosa dicotomia “democracia (burguesa) versus fascismo” (que, como vimos, são dois lados da mesma moeda”).

Assim, nessa paralisia estratégica da esquerda, preocupada mais em conservar a ordem vigente do que em mudá-la, não é difícil inferir que o grosso da população identifique o campo progressista como parte do “sistema”. Ou seja, “mais do mesmo”.

Diante dessa realidade, cabe à esquerda recuperar seu histórico viés contestatório e revolucionário. Caso contrário, além de continuar a amargar derrotas no campo eleitoral, assistirá atônita ao crescimento da extrema direita como espectro político que (supostamente) canaliza a revolta (mais do que justa) da classe trabalhadora.

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João Pedro Silva é professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)

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Last Update: 16/12/2024