Avançando em frente (II)

por Izaías Almada

A propósito, lembro-me sempre de uma frase de Augusto Boal, meu mestre em teatro, ao responder pergunta feita por ele mesmo para provocar uma reflexão de todos aqueles que gostam e, sobretudo, vivem do teatro profissionalmente: “O que pensa você da arte de esquerda?”.

Com refinada ironia e sendo um dos grandes pensadores sobre as virtudes da arte de representar nas transformações sociais, Boal respondeu:

“Ainda bem que eu nasci! Senão, quem veria o mundo do jeito que só eu vejo? Quem contaria a história que só eu posso contar?”

E eu faço a mesma pergunta: quem contaria a história que só eu posso contar?

Na minha primeira infância, onde procurei por minhas mais remotas lembranças, recordo-me de ter morado numa pequena casa em rua de terra ainda, sem calçamento e cercada com arame farpado, no bairro do Progresso, hoje Padre Eustáquio, na época um dos bairros periféricos de Belo Horizonte.

Bairro de famílias pobres que ficava a vários quilômetros do centro da cidade e era servido apenas por uma linha de ônibus e uma de bondes elétricos, sendo esse o meio de transporte mais usado por meus pais.

Já não me lembro do tempo que os bondes levavam no seu percurso do centro da cidade (Praça Sete) ao bairro do Progresso, passando por vários outros bairros, como o bairro de Carlos Prates, por exemplo, onde morava o tio Clóvis, Clóvis Vieira do Vale, na época major do Exército Brasileiro, irmão mais velho de minha mãe, dona Martha.

Tio Clóvis, homem de pouquíssimas palavras, casou-se com tia Laurinda e o casal teve vários filhos e filhas: Blair, Ilma, Clóvis Filho (Vivinho), Josias, Jair, Iris e Ivani. Moravam todos na Rua Espinosa, número 423, endereço que frequentei durante muitos anos da minha infância e do qual nunca me esqueci.

Minha mãe tinha mais um irmão, o tio Abdulassis Vieira do Vale (ninguém nunca soube explicar de onde tiraram esse nome árabe para o meu tio Abdula, como gostávamos de chamá-lo), casado com a tia Mariana, com quem teve uma filha: Cacilda.

Pouquíssimas vezes vi o tio Abdulassis, oficial da Polícia Militar, que não morava em Belo Horizonte, mas em Juiz de Fora e, pela profissão – provavelmente – em outras cidades do interior mineiro.

Outra irmã de minha mãe era a tia Marieta, Marieta do Vale Minardi, casada com o tio Luis Minardi, nascido na Itália, região da Calábria.

Boa parte da família não nutria muitas simpatias pelo tio calabrês, a quem todos diziam ser um homem rude e sem papas na língua. Era dono de uma marmoaria situada na Avenida Bias Fortes, perto da Praça Candelária e do antigo Mercado Municipal.

Por acaso sempre me dei bem com o meu tio Luís, por uma razão muito simples, mas que poderia ter sido uma tragédia.

Os rendimentos da marmoaria deram a ele a oportunidade de comprar um sítio nas proximidades das cidades de Itabirito e Ouro Preto, onde eu costumava passar um que outro fim de semana prolongado por feriado ou mesmo as férias escolares do final de ano.

Numa dessas idas ao sítio, aí por volta de meus 12 anos de idade, após um almoço, o tio Luís sugeriu uma caminhada para ajudar a digestão, convidando-me e às suas duas filhas mais velhas, também adolescentes: Ana Luísa e Marília.

Ele ia à frente do grupo segurando um galho de árvore, já seco, afastando alguns dos arbustos que iam fechando as trilhas percorridas e também, segundo suas palavras, para a eventualidade de aparecer alguma cobra venenosa.

Numa determinada altura da caminhada, tendo que bater com mais força em alguns arbustos renitentes, o galho de árvore escapou da sua mão e foi acertar minha testa com bastante força. Com o impacto cai e fiquei ligeiramente zonzo.

Sem saber muito bem o que dizer, embora tivesse pedido imensas desculpas, correu junto com as filhas em minha direção e, com jeito, colocaram-me novamente de pé.

Atônito, tio Luís olhava para mim preocupado, pois logo surgiu-me um “galo” na testa, e se desculpava em português e italiano com a cara espantada e sinceramente preocupada.

(Continua)

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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Last Update: 14/12/2024