O golpe de Estado que está na origem das reflexões dos historiadores é o de César (49 a.C), detonando a república romana. Mas, por certo, o evento que mais registro mereceria da ciência moderna é o de Luís Bonaparte que, ao dissolver a Assembleia Nacional, proclamou o segundo império francês e se fez imperador (1852). Golpe de Estado ainda vivo e estudado como modelo e espécie, graças ao texto clássico de Karl Marx.

Ambos os eventos, nada obstante a distância histórica, indicam um denominador comum que chega à contemporaneidade: o golpe de Estado se desenvolve, necessariamente, na intimidade do poder, e é quase sempre operado pelo Príncipe, ou em seu proveito. E, como ilustra a rica contribuição da tragédia política brasileira, seja para eclodir ou efetivar-se, o bom êxito do golpe de Estado carecerá ora do apoio ativo, ora da sanção das forças armadas.

Antes, também entre nós, a proclamação da República, e mais tarde a implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas e seus generais, já assinalavam o papel das forças armadas como sujeito, e, no evento de 15 de novembro de 1889, como sujeito único. Em 1937, com o rompimento da ordem constitucional de pretensões liberais, o presidente que se fazia ditador dilatava seu poder pessoal, livrando-o das limitações com as quais o jungia o rito democrático.

Contra o Príncipe, e fora dos limites do poder, a conjura opera mediante o putsch, que conhecemos em 1935 e 1938, as rebeliões e a revolução, cujo radicalismo parece ter dificuldade de se aclimatar entre nós. A única exceção de insurgência vitoriosa, até aqui, foi o movimento de 1930, liderado por três oligarquias estaduais e um punhado de oficiais remanescentes do tenentismo.

Mas o golpe de Estado, movendo as peças do poder (e entre elas se destacam, quase sempre, as forças armadas), também se pode voltar contra o governante, cujo descarte não exige, necessariamente, alteração do regime.

Em agosto de 1954, sem fratura legal, foi deposto o presidente Getúlio Vargas (eleito em 1950), e, dez anos passados, nessa altura com ruptura da ordem constitucional, as forças armadas depuseram João Goulart, dando vida e consequência ao processo reacionário de 1955, qual seja, a tentativa de golpe liderada pelos ministros militares com vistas a impedir a posse de Juscelino Kubitscheck, frustrada por um contragolpe, também militar, o chamado “11 de novembro”, reação legalista do general Teixeira Lott, então ministro da Guerra.

A democracia mambembe seria salva, portanto, por uma dissidência entre generais, o que se repetiria na intentona de novembro de 2022, arquitetada a soldo de Jair Bolsonaro por generais, coronéis, majores e do almirante comandante da Marinha.

De qualquer forma, cumpre-nos festejar a divisão dos fardados. Toda vez que se unificam (como em 1937, 1954 e 1964) a democracia entra em transe; quando se dividem (como em 1955 e 1961 e em 2022), a ordem constitucional é preservada.

Muitas vezes os golpes são perdurantes. Do 1º de abril de 1964 decorreu o longo mandarinato militar que, embora vencido em 1985, faz presente, até aqui, a preeminência do poder das baionetas sobre a nação.

Daí a preferência dos quartéis pela repressão interna, recusado o papel de responsáveis pela soberania nacional, o único destino que em país de pretensões democráticas é outorgado às forças armadas.

Mesmo quando implica alteração de regime, o golpe de Estado não perde sua intimidade com o poder. Somos, também na espécie, ricos em exemplos. A substituição do império arcaico pela república, em 1889, deve ser vista acima de tudo como um conflito entre um velho cabo de guerra estimado pela tropa e um gabinete já sem forças para governar, antecipando o esperado recesso do imperador, ancião e enfermo.

O país muda de regime, para continuar o mesmo.

Na sequência da Proclamação da República o marechal Floriano Peixoto, vice-presidente, recusa-se a convocar as eleições exigidas pela Constituição que jurara, e se senta na cadeira que o marechal Deodoro deixara vazia, ao ver fracassada sua tentativa de golpe mediante a dissolução do Congresso, aquele intento que Luís Bonaparte levara a cabo com sucesso.

Essa modalidade de golpe, a parlamentar, tomou curso no Brasil e jamais esteve tão vigente como nas duas últimas legislaturas, quando um Congresso ordinário vem, sistematicamente, como um insaciável Moloch, alimentando-se dos poderes que expropria do Executivo.

O Congresso age contra a nação, a soberania popular e o Estado.

A ciência política conhece, hoje, várias alternativas de regime de governo que giram em torno das modalidades-chave presidencialismo e parlamentarismo. No vasto elenco das variáveis circulam experiências que procuram conciliar presidencialismo e parlamentarismo na busca de arranjos híbridos, cujo fito é acomodar a força do Executivo (própria do presidencialismo) com uma maior aproximação com a vontade geral, que, em tese, estaria mais próxima dos parlamentos.

No Brasil, um Congresso de representação e legitimidade mais do que discutíveis vem, sistematicamente, sobretudo ao se apoderar do Orçamento público, alterando as características do regime presidencialista.

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Desajuste financeiro I – Em que pesem os números positivos da economia, que nem os chamados jornalões podem varrer para debaixo do tapete, o Banco Central, independente do país e de seu povo, houve por bem subir a Selic para asfixiantes 12,25%, fazendo do Brasil o país com a segunda maior taxa de juros do mundo, atrás apenas da Turquia.

Desajuste financeiro II – Para piorar, nada indica que a troca de comando na autoridade financeira trará maior responsabilidade social. Pelo contrário.

Eu sou você amanhã – Chamada do Le Monde (9.12.24, p.9): “Na Argentina, a política orçamentaria do presidente libertário fez a pobreza crescer, mas a inflação caiu”.

Abutres à espreita – À crônica de horrores que o jornalismo econômico, sempre atento aos humores do dito “mercado”, nos submete diariamente, somou-se nos últimos dias um capítulo singularmente perverso. A notícia é que a banca financeira se mostrou satisfeita não apenas com a alta da Selic, mas também com a internação do presidente Lula e as delicadas cirurgias a que foi submetido.

*Com a colaboração de Pedro Amaral

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Last Update: 13/12/2024