Não fossem as imagens registradas pelas câmeras corporais de policiais militares, Evandro Alves da Silva jamais teria como provar sua inocência e denunciar a brutalidade da qual foi vítima durante uma ação policial na Baixada Santista, no litoral paulista. Ele é um dos sobreviventes da Operação Escudo, desencadeada em julho de 2023, deixando um saldo de 28 mortos em menos de 40 dias. Depois de ferido por vários disparos feitos pelos agentes, Silva acredita que só não foi executado porque se “fingiu de morto” antes de efetivamente desmaiar. Passou mais de 20 dias em coma, perdeu o baço e a ponta do dedo mínimo com tiros de calibre 12. Com base nas gravações, o motoboy montou um robusto relatório, enviado à Defensoria Pública, desmentindo a versão de que a polícia só teria atirado porque ele estava de tocaia numa janela, com uma arma em punho.

Passado mais de um ano, Silva carrega consigo as sequelas de ter visto a morte de perto. Ele é um dos poucos que têm coragem de contar o que aconteceu, porque o clima de pânico segue na comunidade. “Medo eu também tenho, até porque sou um alvo vivo”, diz o motoboy, que passou a conviver com crises de pânico e ansiedade. “Aqui no morro, essa prática é comum. A polícia invade, atira, mata, e as pessoas preferem não buscar ajuda, muitas vezes porque elas têm passagem na polícia ou porque a palavra delas nunca é validada”, explica Anna Fernandes Marques, esposa e advogada de Silva. Segundo ela, uma arma foi “plantada” no sofá da casa para incriminar o marido, o que pode ser comprovado pela sequência de imagens gravadas pelas câmeras dos próprios policiais. “Não havia nada e, de repente, ela aparece em cena. O inquérito contra Evandro acabou arquivado, mas ele deve ser anulado, porque não havia arma alguma. Esse crime não aconteceu.”

“O caos está instalado”, resume o ouvidor das polícias de São paulo

O episódio ressalta a importância das câmeras corporais como ferramentas de controle da ação policial, um recurso desprezado desde o primeiro momento pelo governador Tarcísio de Freitas, maior incentivador, ao lado do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, da ação violenta da polícia paulista e que desencadeou a maior crise de segurança pública do estado nos últimos anos. Ao assumir o governo, em janeiro de 2023, Freitas anunciou a intenção de abolir o uso das câmeras. Diante da repercussão negativa, manteve o programa, mas parou de investir na sua expansão. Quando, finalmente, anunciou um edital para aquisição de novos equipamentos, especificou que os aparelhos deveriam ter um botão de “liga e desliga”, que permitiria ao policial decidir quando iniciar a gravação.

Aparentemente, o governador terá de refazer o processo de licitação. Na segunda-feira 9, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, determinou o uso obrigatório de equipamentos com gravação ininterrupta pela PM paulista. Pudera. As denúncias de violações aos direitos humanos cometidas por agentes da corporação não param de crescer. Cláudio Aparecido da Silva, ouvidor das polícias de São Paulo, não titubeia ao afirmar que “o caos está instalado”.

Nos últimos tempos, numerosos casos chocaram a população, entre eles o assassinato, em novembro, do pequeno Ryan da Silva Andrade Santos, de apenas 4 anos, durante uma desastrosa operação policial na cidade de Santos. O estudante de Medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta foi outro caso de grande repercussão. Desarmado, ele foi executado à queima-roupa por PMs nas escadarias de um hotel na capital, em meio a um aparente surto psicótico. Seu crime? Dar um tapa no retrovisor de uma viatura. No início deste mês, um policial à paisana disparou 11 tiros em Gabriel Soares, morto pelas costas enquanto fugia com três pacotes de sabão furtados de um supermercado. Houve ainda a abordagem violenta em Barueri, que resultou na agressão contra uma família inteira, deixando uma idosa de 63 anos ferida na testa. Um dos episódios mais escandalosos foi o de um rapaz arremessado de uma ponte pelo agente Luís Felipe Alves Pereira. A cena gravada pelo celular de uma testemunha repercutiu no Brasil e no mundo.

Ryan, de 4 anos, foi atingido por um disparo de fuzil. Gabriel Soares levou 11 tiros pelas costas de policial à paisana. Sobrevivente da Operação Escudo, Evandro Silva se fingiu de morto por temer execução – Imagem: Redes sociais e Allison Sales/Folhapress

“Todos esses casos demonstram um descontrole da tropa, isso é inegável”, afirma Silva. Na avaliação do ouvidor, a única forma de retornar à normalidade é uma mudança de postura do próprio governador. “É o momento de exigir que Tarcísio faça com que a impunidade não prospere, que realinhe a tropa, para que num futuro breve a população volte a confiar na polícia.” Questionado sobre a infindável série de abusos, Freitas reconheceu que errou e, agora, está convencido de que a câmera corporal “é um instrumento de proteção da sociedade”, prometendo não apenas manter o programa, mas ampliá-lo para todo o policiamento ostensivo no estado. Manteve, porém, o truculento capitão Guilherme Derrite no comando da Segurança Pública. O secretário não apenas avalizou as violentas operações na Baixada Santista, destinadas a vingar a morte de policiais, como trocou, de uma só vez, 34 dos 63 coronéis em posição de comando da Polícia Militar, incluindo vários egressos da Rota, a violenta unidade de elite da qual ele fez parte.

“Desde o início, estamos dizendo que o governador está errado, questionamos essa metodologia do uso da força, e defendemos uma polícia técnica e bem preparada”, salienta Silva, acrescentando que a decisão do STF, de tornar obrigatório o uso de câmeras com gravação ininterrupta, reposiciona o debate. “Os policiais agem com violência porque têm crença na impunidade. O governador precisa permitir que quem atua no controle externo da atividade policial possa fazer isso com tranquilidade, sem receio de retaliações, como acontece frequentemente por parte do secretário de Segurança Pública contra a Ouvidoria.”

O ministro da Justiça, Ricardo ­Lewandowski, também se pronunciou sobre a escalada da violência policial em São Paulo e classificou os episódios como “injustificáveis”, apesar de defini-los como “casos isolados”, e acrescentou que o Estado não pode compactuar com esses crimes. Ele anunciou que o Ministério da Justiça vai editar, nos próximos dias, um ato normativo disciplinando o “uso progressivo da força” pelas polícias.

De janeiro a setembro, 474 pessoas foram mortas por pms, alta de 82% em relação ao mesmo período do ano passado

Segundo a pasta, nove estados foram credenciados para receber recursos da União destinados à aquisição de câmeras corporais. Serão liberados 102 milhões de reais nessa primeira fase, que começa a ser implantada ainda no primeiro semestre de 2025. São Paulo terá direito a 27,8 milhões de reais, o suficiente para equipar apenas 2,1 mil dos 90 mil PMs existentes no estado. De janeiro a setembro deste ano, 474 pessoas foram mortas por policiais militares em serviço em São Paulo, um crescimento de 82% na comparação com o mesmo período do ano passado. Nesse mesmo período, foram registrados 231 feridos, alta de 32% em relação a 2023.

“São Paulo vem de uma trajetória de Polícia Militar que é reconhecida pelo profissionalismo, pelo esforço institucional em documentar suas práticas através de seus manuais, procedimentos operacionais de padrão, que até servia de inspiração para outras corporações. O que a gente tem visto nos últimos anos é um reposicionamento institucional, não da polícia, mas de toda a política de segurança pública, que tem resultado nesses episódios de violência”, avalia Leonardo Carvalho, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Quando o programa de câmeras corporais, implantado na gestão de João Doria, é colocado em xeque pelo atual governador, o que a gente vê é um recrudescimento, um aumento dos números de letalidade policial.”

Na quinta-feira 5, centenas de manifestantes realizaram uma passeata pelas ruas de São Paulo, rumo à Secretaria de Segurança Pública. Eles pediam a ­saída de Guilherme Derrite do cargo. “Esfaquearam meu filho, pisaram nele, depois deram cinco tiros”, denunciou José Carlos de Assis, em meio aos manifestantes. Ele é pai de Gabriel, assassinado pela polícia em 2021, em Guaianases, na Zona Leste de São Paulo. Na Assembleia Legislativa, parlamentares de oposição protocolaram um pedido de ­impeachment do secretário. “Não tem mais como Tarcísio alegar que são casos isolados. Existe um projeto de extermínio em curso, validado pelo discurso do governador e do secretário”, dispara Ediane Maria, deputada pelo PSOL, integrante da Comissão de Segurança Pública e Assuntos Penitenciários. Segundo o deputado Paulo Batista Reis, do PT, a crise na segurança pública e a deposição de Derrite precisam ser debatidas no plenário, mas a base governista se mantém em silêncio. Ele acusa Derrite de usar a Secretaria como “trampolim para um projeto político maior em 2026”.

Desde que assumiu o governo, Tarcísio de Freitas sabota o programa de câmeras corporais – Imagem: SSP/GOVSP

Embora não represente a maioria dos agrupamentos policiais, e existam diferenças e peculiaridades nas corporações de um estado para outro, a ação violenta da polícia está intrínseca à trajetória histórica e na cultura organizacional das polícias brasileiras, característica que, mais recentemente, se soma à ascensão da pauta ideológica ultraconservadora, que não só relativiza a violência, como também dá licença para a polícia matar. “A gente sabe que é uma minoria que está disposta a se desviar da conduta correta, mas também sabe que existe um porcentual significativo de policiais que aderem às propostas da extrema-direita. Só que é muito diferente você achar que ‘bandido bom é bandido morto’ e estar disposto a apertar o gatilho”, comenta a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em entrevista ao canal de CartaCapital no YouTube.

“A ascensão da extrema-direita nas últimas décadas, com expressão no Executivo, no Legislativo e nas ruas, vocalizou as demandas de setores sociais que apoiam soluções extremistas para a persistente questão da insegurança”, completa o também sociólogo José Roberto Ratton, professor da UFPE e coordenador do Núcleo de Estudos em Criminalidade e Políticas de Segurança da instituição, acrescentando que “a chegada de Bolsonaro à Presidência e as posições explícitas do ex-presidente funcionaram como ‘salvo-conduto’ para que as polícias atuassem de forma ainda mais violenta”. Ratton cobra responsabilidade do Estado brasileiro nos casos de violência policial e critica o mau funcionamento das corregedorias e das ouvidorias.

“Não é possível imaginar que a violência dos praças, na ponta, não esteja, em alguns casos, sendo tolerada ou diretamente estimulada pela oficialidade. E o caso torna-se mais grave quando são os próprios governadores que apresentam posições ou justificativas que favorecem o uso da violência indiscriminada e completamente fora da lei por amplos setores das polícias”, ressalta o pesquisador. Ratton também condena o que chama de “currículo paralelo” dos policiais, a incentivar “o uso descabido da violência, sem controle, desproporcional e sem regras por amplos setores das polícias brasileiras, a encontrar apoio de parte da população, cansada da incapacidade política do Estado em construir respostas concretas necessárias e estruturadas no âmbito do estado de direito e da democracia”.

De uma só tacada, Derrite trocou 34 dos 63 coronéis em posição de comando na PM paulista

Já o pesquisador Samuel Vida, professor e coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da UFBA, reforça a necessidade de superar a falácia do “caso isolado” e defende a responsabilização dos superiores hierárquicos das corporações policiais, dos gestores administrativos e dos governantes. Para o pesquisador, a escalada da violência policial é resultante do fracasso do modelo de polícia e da política pública de segurança adotada pelo Estado, independentemente do governo de plantão e do partido político.

“Desde a redemocratização, manteve-se inalterado o papel historicamente reservado ao aparato policial brasileiro: o controle social e político das maiorias negras e populares, vistas como ameaçadoras pelas elites”, observa Samuel Vida. “Os crescentes investimentos orçamentários na formação profissional e na aquisição de equipamentos guiaram-se pelo recrutamento de efetivos militarizados e treinados para a repressão violenta, dirigida aos vulneráveis, e na aquisição de equipamentos bélicos de alta letalidade, em detrimento da qualificação técnica e valorização profissional dos servidores da área da segurança pública, da promoção e defesa da cidadania e do uso da inteligência e das tecnologias disponíveis para fortalecer a investigação e a promoção de ações preventivas eficazes.”

Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania e responsável pelo projeto Droga: Quanto Custa Proibir, lembra que os negros estão sobrerrepresentados nos números de violência e letalidade policial, assim como são maioria nos sistemas penitenciário e socioeducativo. Para a pesquisadora, o Estado erra ao insistir na política de “guerra às drogas”. Ela cita a pesquisa Efeito Bumerangue, publicada na terça-feira 10, a revelar um investimento de 7,7 bilhões de reais para o combate ao narcotráfico, sem nenhum efeito prático, valor que poderia ser destinado para áreas como educação, saúde ou mesmo na formação cidadã de policiais.

Barroso, do STF, determinou o uso obrigatório de equipamentos com gravação ininterrupta. Lewandowski liberou recursos para comprá-los – Imagem: Carlos Moura/STF e Jamile Ferraris/MJSP

“Além dos elevados valores econômicos, a guerra às drogas tem enormes ­custos sociais, leva terror às comunidades pobres e negras do País. É uma política de cunho racista, que tem um endereço muito claro: os corpos negros, que ou são mortos ou são presos”, afirma. “Se pensássemos de forma racional a segurança pública, certamente não estaríamos investindo todo esse dinheiro numa estratégia fracassada, que não oferece segurança à sociedade. Ao contrário, vemos o poder das facções criminosas só aumentar.”

Enquanto a crise da segurança pública se alastra Brasil afora, inclusive em estados governados pela esquerda, como a Bahia, o debate sobre o tema no Congresso Nacional praticamente limita-se a notas de repúdio para quem defende direitos humanos e moções de aplausos para policiais que matam bandidos, reforçando a máxima de “bandido bom é bandido morto”. Rachada entre o grupo que defende propostas sobre uma política de segurança pública e os que ideologizam o tema e querem o recrudescimento da polícia, a Bancada da Bala tem mais de 60 parlamentares, entre deputados e senadores, mas não consegue apresentar para a sociedade ações concretas que ponham fim à crescente violência policial.

“Nós temos os grupos que defendem a área de segurança e outros com um traço mais radical, fazendo com que o debate que realmente interessa trave”, observa André Santos, analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, o Diap, e sócio-diretor da Contatos Assessoria Política. “Esses extremistas ficam numa discussão de oposição constante ao governo e não buscam construir políticas públicas voltadas para uma rede de segurança que atenda a sociedade como um todo.”

A demora e a falta de clareza sobre as denúncias levadas ao Ministério Público são motivo de decepção da população com a Justiça. Um recente estudo do Instituto Sou da Paz mostra, porém, que houve um tímido aumento da taxa de resolução de assassinatos no Brasil. A pesquisa Onde Mora a Impunidade revelou que, em 2022, 39% dos homicídios dolosos foram esclarecidos, um pouco acima dos 33% verificados em 2020 e dos 35% aferidos em 2021. Para compor a nova edição do documento, o Instituto solicitou aos Ministérios Públicos e aos Tribunais de Justiça de todos os estados, via Lei de Acesso à Informação, dados sobre as ocorrências que geraram denúncias criminais até um ano após a data do crime. •

Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.

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Last Update: 12/12/2024