Em uma decisão histórica, a Primeira Seção do Tribunal Superior de Justiça autorizou, em novembro, a importação de sementes e o cultivo de cannabis para fins medicinais no Brasil. Os ministros da Corte estabeleceram um prazo de seis meses para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentar a questão. Embora represente um avanço, pesquisadores e ativistas alertam que ainda há muitos desafios a serem superados. Inicialmente, a liberação restringe-se à produção do chamado cânhamo industrial, variedade da cannabis com até 0,3% de THC, o princípio psicoativo da maconha. Na prática, essa limitação encarece a extração do canabidiol, usado na maior parte dos tratamentos à base de cannabis.
A ministra Regina Helena Costa, relatora do caso no STJ, entende que a cannabis com baixa concentração de THC não pode ser enquadrada nas restrições da Lei de Drogas e destaca que a liberação destina-se exclusivamente a fins farmacológicos e industriais. Se, por um lado, o mercado do cânhamo, voltado para a indústria têxtil e de bioplásticos, poderá dar um grande passo, por outro, a decisão ainda é limitadora para a indústria farmacêutica e para as associações dedicadas à produção de remédios de baixo custo com substâncias extraídas da maconha.
Margarete Santos de Brito, diretora da Apepi, a primeira organização a conquistar na Justiça o direito de importar sementes e cultivar cannabis no Brasil para a fabricação de medicamentos, alerta que a decisão traz insegurança jurídica e pode interferir no tratamento de milhares de pacientes. “Para as associações é muito ruim, porque nos coloca em uma posição de ilegalidade”, critica. Atualmente, nenhuma entidade produz a planta com um teor tão baixo de THC no País, alerta a advogada e ativista.
Apesar da restrição imposta, a decisão do STJ abre caminho para o diálogo, avalia Brito. A Apepi e dezenas de outras associações acionaram o Ministério da Saúde e esperam que seja possível avançar em uma regulamentação específica. Isso porque, sem o suporte dessas entidades, muitos pacientes se veem obrigados a comprar medicamentos importados, que são caros e inacessíveis para a maior parte da população.
Na avaliação do psiquiatra Flávio Falcone, integrante da Equipe do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Unifesp, a decisão do STJ ainda não traz benefícios para os milhares de pacientes brasileiros que dependem desses medicamentos. “Parece atender apenas aos interesses da indústria farmacêutica e do cânhamo”, avalia. Ele explica que um tratamento baseado em baixa concentração de THC, além de não servir a todas as comorbidades tratadas atualmente com cannabis, pode encarecer muito o produto final.
Utilizar todos os componentes da flor de cannabis − ou seja, o CBD e o THC, as duas substâncias mais exploradas para tratamentos medicinais − é a melhor forma de obter bons resultados para a maioria das doenças, explica o psiquiatra, que também atua na associação Flor da Vida. Atualmente, cerca de 400 mil pacientes estão autorizados pela Anvisa a fazer tratamento baseado em medicamentos produzidos a partir da maconha. Os óleos e as pomadas têm apresentado resultados satisfatórios para inúmeras doenças, entre elas epilepsia, fibromialgia, ansiedade, depressão, alguns tipos de câncer, além de quadros clínicos de dores crônicas.
Falcone acrescenta que, mesmo com a decisão do STJ, as associações vão precisar continuar recorrendo à Justiça para manter suas produções. Os pacientes que optam por plantar cannabis para produzir seu próprio medicamento também precisarão obter um habeas corpus para se proteger de qualquer processo relacionado à draconiana Lei de Drogas.
A decisão liberou apenas o cânhamo, variante com baixo teor de THC, o que encarece a extração do canabidiol
“Ainda não é o ideal, mas representa um avanço importante, sobretudo se considerarmos o atual cenário, de ausência completa de regulação”, acredita Felipe Nechar, diretor jurídico da organização Divina Flor. O advogado avalia ser difícil produzir no Brasil uma flor de cannabis com tão baixa concentração de THC, principalmente devido a fatores climáticos. “Ao chegar ao solo tropical, cada semente vai aclimatar-se de uma forma diferente. Em Mato Grosso, nossa produção tem em torno de 20% de THC e 60% de CBD”, explica. Ao chegar ao produto final, essa concentração é diluída de acordo com a necessidade de cada paciente.
O biólogo Renato de Traglia Tonini vê com mais entusiasmo a liberação do plantio, pois facilitará as pesquisas com cannabis no País, que hoje dependem da importação de insumos. Doutorando em Genética e Melhoramento pela Universidade Federal de Viçosa e pesquisador do Banco Ativo de Germoplasma de Cannabis, ele explica que, de fato, o clima tropical é propício à produção de cânhamo com baixíssima concentração de THC. “É comum que uma semente, ao ser aquecida, tenha o teor de THC alterado. Os grãos importados podem ter suas características modificadas em um ambiente mais quente.” A despeito disso, o plantio de maconha permitirá trabalhar para a estabilização das sementes, avalia.
Logo após a decisão do STJ, Santa Catarina aprovou, em 27 de novembro, uma lei que institui a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de maconha. Pedro Sabaciauskis, diretor da associação Santa Cannabis, destaca que agora as entidades poderão contribuir para tratamentos na rede pública, de forma alinhada aos objetivos das autoridades de saúde. “Esse pode ser um bom caminho para todos os estados, porque fortalece a economia local de cada região”, avalia.
Pela lei, o SUS fornecerá medicamentos produzidos pelas indústrias da região para todas as doenças, conforme a prescrição médica. É uma legislação mais avançada do que a de São Paulo, que atende apenas três comorbidades. Para o especialista, a grande vantagem da decisão do STJ será o fomento à pesquisa. “Hoje, a Santa Cannabis apoia 15 pesquisas em seis universidades diferentes. Nosso paciente mais jovem tem 1 ano e 6 meses, e o mais velho tem 102 anos. Os medicamentos à base de cannabis atendem um público muito amplo. Não tem mais como voltar atrás.” •
Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Corrida de obstáculos’