Emmanuel Macron está prestes a nomear o sexto primeiro-ministro em sete anos de governo. Nos 19 anos da administração de Jacques Chirac e Giscard d’Estaing, foram seis. Em artigo no site Mediapart, o jornalista Laurent Mauduit atribui ao presidencialismo francês a responsabilidade pela crise política que levou alguém a definir 2024 como annus horribilis.
Feita sob modelo para Charles de Gaulle, a Constituição de 1958, início da V República, confere um poder hipertrofiado ao presidente, que se vê como Júpiter, o deus dos deuses na mitologia. “Um sistema que dá quase plenos poderes a um só homem, aos seus caprichos e decisões”, escreve Mauduit.
A Constituição não prevê o impeachment do presidente da República. Mas o sistema francês, no qual o presidente cuida da política externa e os ministros e o primeiro-ministro governam o país sob a batuta do ocupante do Palácio do Eliseu, garante a possibilidade de motion de censure contra o premier e sua equipe. Foi o que aconteceu em 4 de dezembro, quando 331 dos 577 deputados da Assembleia Nacional derrubaram a administração de Michel Barnier, após 90 dias da sua nomeação por Macron.
La France Insoumise, fundado por Jean-Luc Mélenchon, três vezes candidato nas eleições presidenciais, apresentou o texto da proposta da moção de censura, que obteve folgada maioria com o voto dos partidos de esquerda do Nouveau Front Populaire, além do apoio da legenda de extrema-direita de Marine Le Pen, Rassemblement National. Os títulos da dívida pública despencaram e chegaram a ficar abaixo dos papéis da Grécia, o segundo país mais endividado do mundo, depois do Japão. Os papagaios franceses somam 3,2 trilhões de euros, segundo o Instituto Nacional da Estatística e dos Estudos Econômicos, o equivalente a 112% do PIB. “A dívida não vai desaparecer por encanto com a moção de censura”, discursou Barnier, em vão.
Destituído em pleno debate do orçamento de 2025, o gabinete está demissionário desde então. Foi a segunda moção de censura aprovada sob a V República. A outra, em outubro de 1962, sob o general De Gaulle, levou à queda do primeiro-ministro Georges Pompidou, renomeado pelo presidente dias depois.
Macron falou à nação no dia 5. Relembrou sua decisão incompreendida de dissolver o Parlamento em 9 de junho e convocar novas eleições legislativas, como prevê a Constituição. A crise subsequente foi atribuída à irresponsabilidade daqueles que querem antecipar a disputa presidencial, mas garantiu que não renunciará ao mandato. O presidente qualificou a aliança da esquerda com a extrema-direita de “frente antirrepublicana”. Barnier caiu com o voto dos deputados da RN, apesar de ter feito mudanças no orçamento por exigência de Le Pen.
A crise não começou, no entanto, agora. A instabilidade instalou-se em 9 de junho, quando o resultado das eleições para o Parlamento Europeu mostrou o partido de Le Pen vitorioso, elegendo mais deputados do que as demais legendas na disputa. Macron sentiu uma espécie de eletrochoque. Anunciou no mesmo dia, em discurso à nação, a dissolução da Assembleia e a convocação de novas eleições. Sua decisão, incompreendida e inesperada, foi tomada de forma solitária, sem consulta aos aliados próximos.
A crise nasce da recusa do presidente em reconhecer a vontade popular
Macron, sem maioria na Câmara antes, colheu um resultado desastroso. As eleições em dois turnos revelaram uma França mais dividida do que nunca e um presidente mais enfraquecido. No primeiro turno, novamente, a Rassemblement National (RN) saiu na frente. Os partidos de esquerda reunidos na recém-criada Nova Frente Popular fecharam um acordo circunstancial com a direita tradicional e os neoliberais para barrar o avanço da agremiação de Le Pen. Uma e outra cederam lugar para os candidatos mais habilitados a vencer os extremistas. Deu certo, em termos. O desastre foi evitado, mas a RN elegeu 143 deputados, atrás da NFP, com 182, e da Renaissance, aglomerado macronista, com 168. O tradicional Les Républicains ficou com apenas 46 cadeiras.
O Parlamento dividiu-se em três grandes blocos. Apesar da maioria da frente de esquerda, Macron preferiu negar as evidências. “Ninguém ganhou”, concluiu. De fato, nenhum partido obteve a maioria absoluta de 289 deputados no Parlamento, mas as regras exigiam do presidente a nomeação de um primeiro-ministro indicado pela Nova Frente Popular, à qual caberia negociar a formação de um governo estável. Déni de démocratie (negação da democracia), acusaram os editoriais de jornais progressistas. A NFP até apresentou uma candidata, Lucie Castets, rejeitada de antemão. Macron continuou surdo.
A crise durou semanas e a França continuou governada por um primeiro-ministro demissionário, Gabriel Attal. O presidente apelou à “trégua olímpica” para justificar a decisão de nomear o primeiro-ministro apenas depois dos jogos de Paris, que ocupavam a mídia e distraíam os franceses. Ao nomear Michel Barnier em setembro, contrariando o voto popular, apostou num homem de direita, que havia negociado o Brexit em nome da União Europeia, hábil e moderado. Deu com os burros n’água.
Na terça-feira 10, Macron continuava a receber representantes de partidos no Eliseu. Nem a legenda de Le Pen nem a de Mélenchon foram convidadas. Depois do encontro no palácio, o secretário nacional do Partido Comunista Francês, Fabien Roussel, declarou que, se for nomeado um primeiro-ministro de direita ou do partido macronista, o PC vai estar na oposição. A crise só piora. •
Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Blefe em dobro”