O recorde de importação de bens de capital de janeiro a novembro, na comparação com o mesmo período do ano passado, é a evidência mais vistosa de uma limitação crônica da economia brasileira, que consiste na penetração continuada de importados em consequência da profunda desindustrialização e da perda de competitividade da manufatura produzida no país. Pavimentadoras de asfalto, tratores, escavadeiras, máquinas para produção industrial, equipamentos, caminhões fora de estrada, ônibus e uma infinidade de produtos intermediários e artigos para consumo final contribuíram para elevar o déficit em transações correntes, de 1% no início do ano para 2,25% em outubro, segundo o Banco Central.

As transações correntes são compostas de balança comercial, balança de serviços, balança de rendas e transferências unilaterais. A duplicação do déficit nesse indicador em menos de um ano desperta preocupações justificáveis. A política fiscal progressiva, que tem impulsionado a demanda, encontrou décadas de desmonte da estrutura produtiva e agora o estímulo está vazando. Em outras palavras, a economia está bombando, mas o fabricante estrangeiro de bens de capital é quem se beneficia. Economistas chamam atenção também para os impactos do fenômeno na taxa de câmbio e o reflexo da própria taxa de câmbio nesse processo.

“Um dos fenômenos que caracterizam o nosso processo de desindustrialização é uma penetração crescente de importados, seja de produtos finais, seja de insumos. Isso como resultado da nossa sistemática perda de competitividade, sob o ônus do custo Brasil, e do fato de não termos constituído capacidades tecnológicas e produtivas da última fase de industrialização mundial, que compreende informática, eletrônicos, comunicação e microeletrônica, entre outros”, observa Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial.

Importações. A economia nacional está bombando, mas o fabricante estrangeiro de bens de capital é quem se beneficia – Imagem: Geovana Albuquerque/Agência Brasília

De 2003 a 2016, prossegue Cagnin, o coeficiente de insumos e componentes comercializáveis importados da indústria de transformação brasileira avançou de 16,5% para 22,3%. No caso da alta e média-alta tecnologia, passou de 26,3% para 41,4%. Quanto a produtos finais industrializados, a penetração de importados saltou de 16,4%, em 2010, para 24,3% em 2023. Nos produtos de alta e média-alta tecnologia, foi de 30,2% para 53,6%.

“Na indústria, o que mais tem puxado o crescimento em 2024 é justamente a parcela que tem maior penetração de insumos importados e também a que mais tem penetração de produtos finais estrangeiros em nosso mercado”, ressalta o economista. Além disso, é importante considerar a pressão concorrencial da China, que teve de deslocar sua produção para outros mercados além de EUA e Europa. As importações da China, quase integralmente de manufaturados, subiram 20,4% de janeiro a novembro, uma variação mais de duas vezes superior ao total das importações, de 9,5%, e das importações de bens industriais, de 9,9%.

“Há certa rigidez nisso tudo, seja porque há bens que não produzimos internamente, seja porque não é evidente substituir um fornecedor por outro nacional. O que se agrava pelo fato de que a desvalorização cambial no Brasil, em geral, vem acompanhada de forte volatilidade e incertezas, dificultando os ajustes necessários na cadeia que reflitam o ganho de competitividade da produção nacional em função do novo câmbio”, ressalta Cagnin. O economista destaca ainda o fato de que o BC poderia agir para evitar a forte volatilidade atual, decorrente da especulação financeira, pois o mercado financeiro faz dinheiro com esse cenário, mas as decisões produtivas são prejudicadas por ela.

A partir de 2005, a natureza da vulnerabilidade externa parece ter se modificado

“Historicamente, o déficit em transações correntes é relevante para a economia brasileira, uma variável que deve ser sempre observada na formulação da política econômica e na estratégia de desenvolvimento. Entretanto, desde a metade da primeira década dos anos 2000, a natureza da vulnerabilidade externa parece ter se modificado”, sublinha Antônio Carlos Diegues Jr., professor do Instituto de Economia da Unicamp.

Nos anos 1980, prossegue o economista, principalmente com a crise da dívida externa, e também durante os anos 1990, em especial com as crises ­pós-Plano ­Real, ocorreu deficiência de financiamento externo no sentido mais clássico, de escassez de reservas. O que causava enormes problemas e dificuldades para se ter graus de liberdade na formação da política econômica e ter uma trajetória sustentável de crescimento. “A partir de 2005 e 2006, houve o boom de commodities e também, o que é muito importante frisar, a adoção da estratégia adequada, no segundo governo Lula e no primeiro governo Dilma, de se fomentar o acúmulo de reservas”, frisa o professor.

Com a crescente exportação do agronegócio, ressalta Diegues Jr., a natureza da debilidade estrutural mudou e esse é um fato muito importante a considerar quando se examinam os déficits em transações correntes. “Não há mais, ao menos no médio prazo, problema de escassez de dólares, e isso é inédito na história da economia brasileira”, ressalta o economista. O País continua a ter vulnerabilidade externa, mas em outras dimensões, mais complexas. Aquela tradicional não existe mais. O resultado é um grau de liberdade muito maior quando comparado à situação de outras economias periféricas, como a da Argentina, onde, no limite, a causa da instabilidade macroeconômica nas últimas décadas é a escassez de dólares. A conclusão é que hoje há uma margem muito maior de crescimento com déficit em transações correntes na comparação com as décadas de 1980 e 1990.

Inação. O Banco Central poderia agir para evitar a forte volatilidade atual, decorrente da especulação – Imagem: Leonardo Sá/Agência Senado

O crescimento do déficit em transações correntes, sublinha Diegues Jr., também resultado da deficiência da estrutura produtiva, é em alguma medida inerente às trajetórias de crescimento dos países periféricos. Sempre que a economia cresce em ritmo razoavelmente acelerado, prossegue o professor, ocorre esse déficit, porque o País é dependente de importações, que são muito elásticas à renda. Ou seja, crescem mais do que a renda. Ou elas caem mais do que a renda, quando a renda cai.

A questão deu origem a todas as interpretações no âmbito do pensamento da Cepal, e estruturalistas, de maneira geral, além de fundamentar a defesa da necessidade de complexificação da estrutura produtiva brasileira e periférica com o objetivo de contornar essa restrição, que seria permanente. “Mas isso só aconteceria quando se constituísse um núcleo endógeno de progresso técnico, de um sistema nacional de inovação, ou seja, se alcançasse o desenvolvimento da dimensão produtiva, o que não aconteceu. Com a desindustrialização, esse fenômeno se torna mais presente, talvez até mais intenso, sempre que há um crescimento da renda, como ocorreu nos governos Lula I e II e Dilma I”, frisa o professor.

No momento atual, com a taxa de câmbio valorizada, há um aumento do poder de compra do trabalhador e da classe média em termos reais, o que amortece as tensões e segura a inflação. Em contrapartida, há uma tendência maior de aumento das importações. Além disso, a desvalorização da taxa de câmbio pode ter impactos inflacionários. Quando a taxa de câmbio está desvalorizada, mas permanece estável, como ocorreu cerca de um ano atrás, com a taxa de 5 para 1, isso não tem impactos inflacionários, frisa Diegues Jr. E se a taxa é razoa­velmente desvalorizada, ajuda a adensar as cadeias produtivas domésticas no médio prazo, a produzir competitividade doméstica e a diversificar a estrutura produtiva, o que é muito positivo. Há, no entanto, algumas instabilidades no curto prazo, por conta de uma desvalorização, que vai afetar a inflação. “Como resolver esse problema? É preciso ter um BC atuando bem, para reduzir a volatilidade dos mercados, tendo como driver uma taxa de câmbio razoavelmente estável e desvalorizada, que pode contornar as limitações apontadas.” •

Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.

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Last Update: 12/12/2024