Educado num país ocidental, Bashar al-Assad foi inicialmente visto pelos sírios como um farol de esperança diante da opressão do regime criado pelo pai. Na guerra civil, ele mostrou toda sua brutalidade. O ditador Bashar al-Assad, de 59 anos, governou a Síria por quase um quarto de século, mantendo-se no poder com mão de ferro durante quase 14 anos de guerra civil.

Mesmo assim, a surpreendente ofensiva lançada por insurgentes islamistas liderados pela milícia Organização para Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, ou HTS) na semana passada derrubou o seu governo em questão de dias.

“O tirano Bashar al-Assad fugiu”, anunciaram os milicianos ao tomarem Damasco, neste domingo 8. E era verdade. Horas depois, a Rússia, um dos pilares do regime sírio, confirmaria a “renúncia” de Assad e a saída dele da Síria.

Um desenvolvimento surpreendente, pois, até dias atrás, Assad era considerado um homem de fortes aliados. Não há dúvida de que, se não fosse pela Rússia, pelo Irã e pelas milícias financiadas pelo Irã, como o libanês Hezbollah, Assad teria sido derrubado pela guerra civil iniciada em 2011. Ao fim, esses aliados aparentemente o abandonaram.

Estudo de medicina em Londres

Assad assumiu o poder em 2000, em substituição a seu pai, Hafez al-Assad, que havia morrido pouco antes. Originalmente, o filho mais velho, Bassel, havia sido designado o sucessor, mas ele morrera num acidente de carro em 1994.

Assim, Bashar concluiu seus estudos de medicina em Londres e retornou à Síria, onde passou por treinamento militar e foi preparado por seu pai para assumir as rédeas do governo em vez de se tornar um oftalmologista e levar uma vida praticamente despercebida pelo público com sua esposa sírio-britânica Asma e seus três filhos.

Quando Hafez al-Assad morreu, o parlamento sírio rapidamente reduziu a exigência de idade mínima para ser presidente de 40 para 34 anos, então a idade de Assad. Candidato único à presidência, ele foi eleito num referendo nacional com 97% dos votos.

Quando Assad assumiu o cargo, ele parecia ser um gentil aficionado por computadores e era um farol de esperança para muitos sírios. Eles viram uma chance de que o filho, educado num país ocidental, acabasse com os anos de opressão do regime criado por seu pai e iniciasse uma liberalização da economia.

Início promissor

De fato, Assad relaxou algumas das inúmeras restrições que seu pai havia imposto desde o início de seu governo, em 1970. Como membro da minoria alauíta, também se apresentou como protetor das várias minorias do país.

Assad libertou prisioneiros políticos e permitiu a circulação de opiniões diversas. Na “Primavera de Damasco” surgiram salões para intelectuais, onde os sírios podiam discutir arte, cultura e política num grau impensável sob o governo de seu pai.

Mas depois que intelectuais assinaram uma petição pública pedindo democracia multipartidária e mais liberdade em 2001, e outros tentaram formar um partido político, os salões foram extintos pela temida polícia secreta, que prendeu dezenas de pessoas.

Em termos de política externa, Assad continuou a política anti-Israel de seu pai, baseada na aliança com o Irã e na insistência na devolução total das Colinas de Golã, anexadas por Israel, embora na prática ele nunca tenha confrontado militarmente Israel.

Assad também tentou manter sua influência sobre o pequeno país vizinho, o Líbano, mas a Síria foi acusada de envolvimento no atentado a bomba de 2005 contra o ex-primeiro-ministro Rafik Hariri em Beirute.

Hariri era um crítico ferrenho da influência de Assad no Líbano. A morte de Hariri tornou-se a derrota de Assad, pois a pressão internacional forçou a Síria a retirar suas tropas do Líbano. Sua imagem de reformador cívico também evaporou rapidamente.

Primavera Árabe e guerra civil

Sob seu governo, que foi reconfirmado na eleição presidencial de 2007, intelectuais e outros críticos do governo foram presos. Quando a Primavera Árabe chegou à Síria, em março de 2011, a população exigiu mudanças em protestos pacíficos.

Assad, porém, presidente e comandante supremo do Exército, negou qualquer legitimidade à oposição. “A Síria está enfrentando uma grande conspiração que pode ser atribuída a Estados distantes e vizinhos”, disse ele em seu primeiro discurso público após as primeiras manifestações.

Assad recorreu aos meios mais duros para reprimir os protestos. Ele enviou tanques achando que os manifestantes desistiriam diante da brutalidade, mas se enganou. Em julho de 2011, parte da oposição pegou em armas. O país entrou numa guerra civil na qual mais de 500 mil pessoas foram mortas, segundo estimativas, e metade da população foi obrigada a deixar suas casas.

A guerra civil síria levou o regime de Assad à beira da insolvência em 2015. O governo sírio mal conseguia pagar seus próprios militares, e Assad controlava apenas cerca de 10% do território na época. Ele então buscou apoio no exterior, não apenas do Irã e da milícia pró-iraniana Hezbollah no Líbano, mas também da Rússia. A intervenção de Moscou na guerra civil síria, com ataques aéreos maciços, foi fundamental para Assad se manter no poder.

Brutalidade

Os jatos russos lançaram bombas sobre a Síria, afirmando que atacavam terroristas. Certamente há terroristas na Síria atualmente, inclusive grupos como o Estado Islâmico. No entanto, esses grupos devem sua existência – ao menos parcialmente – ao próprio regime de Assad. No final de 2011, talvez para desacreditar os insurgentes, Assad ordenou a libertação de inúmeros extremistas muçulmanos sunitas das prisões.

Esses extremistas acabaram se unindo aos rebeldes e, por fim, com financiamento e apoio dos países do Golfo, formaram a maioria dos que lutavam contra o governo sírio. E assim, o que deveria enfraquecer uma revolução acabou criando um monstro.

Um dos exemplos mais infames da crueldade do regime foi um ataque com gás venenoso em Ghouta em 2013. Foguetes com o gás nervoso sarin atingiram áreas controladas pela oposição ao redor de Damasco, matando centenas de pessoas. Esse foi o mais mortal dos ataques com armas químicas desde a guerra entre o Irã e o Iraque, e não foi o único.

Os EUA culparam Assad. O governo sírio negou a acusação, mas se viu diante de uma ameaça de intervenção militar, pois o presidente Barack Obama havia declarado inaceitável o uso de armas de destruição em massa seis meses antes. Assad neutralizou a ameaça de intervenção dos EUA oferecendo-se para destruir as armas químicas.

Assad também não hesitou em lançar bombas contra escolas e hospitais sírios. Devido à brutalidade de seu governo, estima-se que centenas de milhares de pessoas tenham perdido suas vidas.

Conflito só aparentemente congelado

Para prender os críticos do governo, o aparato de segurança de Assad construiu uma rede de centros de detenção. Grupos internacionais de direitos humanos e promotores públicos denunciaram o uso generalizado de tortura e execuções extrajudiciais nesses centros de detenção, administrados pelo governo da Síria.

Apesar de mais de uma década de guerra civil, incluindo a destruição e as inúmeras vidas perdidas, Assad conseguiu se manter no poder na Síria.

Aos poucos, a situação externa parecia se normalizar. A Liga Árabe readmitiu a Síria no ano passado, e a Arábia Saudita anunciou, em maio, a nomeação de seu primeiro embaixador na Síria desde que rompera relações com Damasco, há 12 anos.

No final de novembro, parecia que o conflito estava congelado, com o governo tendo recuperado o controle sobre a maior parte do território da Síria, enquanto o noroeste permanecia sob o controle de grupos rebeldes, e o nordeste sob o controle dos curdos.

Porém, tudo mudou rapidamente quando grupos islamistas no noroeste da Síria lançaram uma ofensiva surpresa em 27 de novembro. As forças do governo logo entraram em colapso, e os aliados de Assad, ocupados com outros conflitos – a guerra da Rússia na Ucrânia e as guerras de Israel contra os grupos Hezbollah e Hamas, ambos apoiados pelo Irã – pareciam relutantes ou enfraquecidos demais para intervir.

Com a fuga de Assad de Damasco, o governo de quase 54 anos de sua família chegou ao fim de forma súbita e inesperada.

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Last Update: 08/12/2024