O cessar-fogo de dois meses negociado entre Israel e o Hezbollah alivia, mas não resolve o drama dos milhares de refugiados no Líbano. Faltam comida, água e itens de higiene pessoal. O medo contamina o ambiente, o deslocamento forçado dilacera as famílias. O país “está em um estado de crise prolongada, com 80% da população na pobreza”, descreve Sabine Abi Aad, coordenadora regional de campanhas da ActionAid, uma das organizações humanitárias no Oriente Médio. Os esforços externos são insuficientes para lidar com a emergência humanitária, diz Abi Aad, que defende a imediata suspensão da venda de armas dos parceiros a Israel. “Os ataques têm enorme impacto sobre os civis”, lamenta.
CartaCapital: As organizações humanitárias, como a ActionAid, estavam preparadas para a invasão israelense do Líbano? Havia uma estrutura montada para abrigar a população civil em fuga?
Sabine Abi Aad: A ActionAid tinha presença no Líbano após nossa resposta de emergência, em 2023, no sul do país. Monitorávamos de perto a situação antes da escalada do conflito em setembro e, por meio de nossos parceiros no local, conseguimos responder rapidamente ao grande número de indivíduos subitamente desalojados pelos ataques recentes de Israel. Nossos parceiros apoiam deslocados em Bekaa, Beirute e regiões do norte, com foco no fornecimento de abrigos de emergência e itens essenciais como colchões, kits de higiene, cobertores e cestas básicas.
CC: Quais são as maiores dificuldades?
SA: Embora o governo tenha criado abrigos para famílias deslocadas, muitos dos desalojados são refugiados sírios e palestinos que há muito tempo são discriminados no Líbano e excluídos da ação humanitária do governo. A maioria dos abrigos recusa-se a acomodá-los, forçando-os a dormir ao relento ou em abrigos temporários ou improvisados, como barracas. Um parceiro da ActionAid, a agência Basmeh and Zeitooneh, apoia os refugiados fornecendo itens essenciais como colchões, cobertores e outros artigos.
CC: Qual é a situação nos campos de refugiados do Líbano? Há um suprimento adequado de alimentos, água potável, remédios e itens de higiene pessoal? As mulheres têm acesso a absorventes menstruais?
SA: Quase 880 mil estão atualmente deslocados no Líbano, de acordo com a ONU, um aumento de mais de quatro vezes desde a escalada do conflito por Israel, em setembro. Muitos estão amontoados em abrigos coletivos em escolas e edifícios públicos. Milhares de outros, que não têm para onde ir, dormem nas ruas ou em edifícios destruídos, parques ou tendas. Os abrigos coletivos estão lotados de gente obrigada a fugir de suas casas. Muitos não têm água ou instalações de banho adequadas, e os suprimentos de comida e outros itens essenciais, como produtos menstruais, são limitados. Mulheres e meninas tentam se cuidar nos períodos menstruais com pouca privacidade ou acesso a absorventes, banheiros e água limpa, e recorrem a amarrar sacos pretos em volta da cintura como forma de lidar com a situação.
“Milhares, que não têm para onde ir, dormem nas ruas ou em edifícios destruídos”
CC: Os ataques aéreos israelenses têm como alvo locais militares ou atingem predominantemente bairros densamente povoados?
SA: Os ataques israelenses têm enorme impacto sobre os civis, como fica evidente diante do grande número de desalojados ou mortos e os enormes danos a casas e outras infraestruturas civis, como ambulâncias e hospitais. Prédios residenciais têm sido atacados. Os refugiados dizem viver em constante medo, sem saber quando ou onde poderão ocorrer os próximos ataques. Civis e infraestrutura não militares nunca devem ser alvos de operações, e pedimos a todas as partes que priorizem a proteção dos cidadãos de acordo com o direito internacional.
CC: Quando as forças israelenses alertam a população sobre um bombardeio iminente, a população sabe para onde ir? Existe um plano de evacuação em áreas sob ataque?
SA: Ordens de evacuação são emitidas por todo o Líbano, muitas vezes em cima da hora, e as famílias são forçadas a fugir de suas casas sob bombardeios. Quando Israel lançou ataques aéreos em Baalbek, há várias semanas, funcionários que trabalhavam para nossos parceiros, também foram obrigados a fugir, nos disseram que, minutos após as ordens, havia quem corresse pelas ruas como “ratos”, num estado de pânico e confusão. Muitas vezes não fica claro para onde devem ir, pois nenhum lugar no Líbano parece seguro. Quem não sabe ler ou não tem acesso a telefones não recebe instruções para sair, e movimentar-se pode ser difícil para idosos e pessoas com deficiência. Deslocar moradores à força de suas casas é uma clara violação do direito internacional humanitário, e ainda assim esses ataques continuam sem restrições. Civis que não podem ou não querem evacuar permanecem protegidos pelo direito internacional. Cito o caso de Dana, forçada a deixar sua casa depois de Israel bombardear a cidade onde ela mora com sua família. Como sua prioridade era levar o filho deficiente para um lugar seguro, Dana levou apenas alguns pertences quando eles fugiram. Não imaginou que o conflito duraria tanto, e agora sua família de cinco integrantes está sem artigos essenciais, como cobertores. Ela disse: “Não recebemos nenhum aviso. De repente, o bombardeio começou a atingir bairros em nossa cidade, e logo estava perto o suficiente para nos forçar a sair”. Mais: “Parecia que eu tinha de sacrificar tudo. Levei apenas algumas coisas. Meu filho tem necessidades especiais, e minha única preocupação era levá-lo para um lugar seguro”.
CC: O cessar-fogo durará, em princípio, dois meses, mas a situação é incerta e o conflito pode voltar. Por quanto tempo mais a população libanesa conseguiria resistir?
SA: O Líbano está num estado de crise prolongada, com 80% da população na pobreza, e o impasse político no país impede uma governança efetiva. O Estado enfraquecido o torna particularmente vulnerável às repercussões de um conflito prolongado. Diante dos graves riscos humanitários e geopolíticos, pedimos que a comunidade internacional aja rapidamente para atenuar a situação e garantir que a ajuda humanitária urgente chegue àqueles afetados pela violência. As escaladas no Líbano e em Gaza têm origem na mesma fonte: as ações militares de Israel, sob o mesmo governo, com os mesmos aliados e os mesmos fornecedores de armas. Os Estados devem suspender a venda de armas para Israel, dados os riscos de que elas sejam usadas para causar danos a civis e a infraestruturas não militares. •
Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Proteger a vida’