As relações Brasil-China ganharam novo impulso. Quando escrevo estas linhas, o Acordo de Sinergia entre os dois países ainda aguarda uma definição mais concreta das formas e instrumentos destinados à consecução dos programas e projetos.
Peço licença para voltar aos idos de maio de 2018, quando o jornal Valor Econômico publicou um artigo do economista de Harvard, Dani Rodrik. Instigante para as dúvidas de uns, contestador às certezas de outros, o texto avaliava o conflito comercial Estados Unidos–China. Sabem todos e mais alguns que o conflito foi deflagrado pela primeira edição do neoprotecionismo de Donald Trump. Reeleito, Trump promete uma segunda edição mais contundente.
Deixemos Trump entregue às idiossincrasias protecionistas e vamos acompanhar Rodrik em suas meditações sobre a China.
Diz ele: “O sucesso fenomenal da globalização da China deve-se tanto às políticas industriais não ortodoxas e criativas quanto à liberalização econômica do regime. A proteção seletiva, os subsídios ao crédito, as empresas estatais, as normas de conteúdo nacional e os requisitos de transferência de tecnologia tiveram um papel em transformar a China na potência industrial que é”.
Dani Rodrik prossegue em suas elucubrações: “A atual estratégia da China, a Made in China 2025, pretende ampliar essas conquistas a fim de catapultar o país para o status de economia avançada… A China participa da globalização com o que poderíamos chamar de regras de Bretton Woods, pelos ditames do regime muito mais permissivo que regulou a economia mundial no início do período do pós-Guerra. Como me explicou uma autoridade chinesa, a estratégia é abrir a janela, mas instalar uma tela sobre ela. A China recebe ar fresco (investimento externo e tecnologia) ao mesmo tempo que mantém os elementos prejudiciais (fluxos de capital voláteis e importações instabilizadoras) do lado de fora”.
Nas últimas quatro décadas, a China executou políticas nacionais de desenvolvimento e industrialização ajustadas ao movimento de expansão da economia “global”. As lideranças chinesas perceberam que a constituição da “nova” economia mundial passava pelo movimento da grande empresa transnacional em busca de vantagens competitivas, com implicações para a mudança de rota dos fluxos do comércio. Os chineses ajustaram sua estratégia nacional de desenvolvimento acelerado às novas realidades da concorrência global e às vantagens domésticas da oferta ilimitada de mão de obra.
Entenderam perfeitamente que as políticas liberais recomendadas pelo Consenso de Washington não deveriam ser “copiadas” pelos países emergentes. Também compreenderam que a dita globalização incluía oportunidades para o seu projeto nacional de desenvolvimento. Ao longo dos últimos 30 anos, a China tirou proveito da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro. No entanto, foram as estratégias nacionais que definiram as políticas de absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias de valor e crescimento das exportações. Os chineses jamais imaginaram que sua escalada industrial e tecnológica pudesse ficar à mercê de uma abertura sem estratégia.
A China apostou no controle de capitais, para administrar uma taxa de câmbio real competitiva, sustentou a dominância dos bancos estatais na oferta de crédito, manteve os juros baixos para “carregar” as reservas trilionárias e empreender um gigantesco programa de investimento em infraestrutura, incentivando a absorção de tecnologia, com excepcionais ganhos de escala e de escopo.
O Estado planeja, financia em condições adequadas, produz insumos básicos com preços baixíssimos e exerce invejável poder de compra. Na coordenação entre o Estado e o setor privado está incluída a “destruição criativa” da capacidade excedente e obsoleta mediante reorganizações e consolidações empresariais, com o propósito de incrementar a “produtividade” do capital. A iniciativa privada dá vazão a uma voraz sede de acumulação de capital através de investimentos em ativos tecnológicos, produtivos e comerciais.
O país percebeu que a nova economia mundial passava pelo movimento da grande empresa global
No discurso de abertura do 19º Congresso do Partido Comunista da China, o presidente Xi Jinping anunciou as políticas de “ampliação do papel do mercado” e de reforço às empresas estatais. Um oximoro para inteligências binárias.
O Projeto 2025 está empenhado em assegurar políticas de apoio financeiro para impulsionar avanços tecnológicos em dez áreas estratégicas, como Tecnologia da Informação, máquinas inteligentes e robótica, equipamento espacial e aviões, veículos movidos a energia alternativa, biomedicina e aparelhos médicos de alta performance. Nessas áreas prioritárias, o Projeto 2025 estimula a associação entre os fundos de investimento públicos (Government Guidance Funds – GGFs) e fundos privados de Venture Capital e Private Equity.
As economias emergentes dispõem de estruturas e trajetórias sociais, econômicas e políticas muito dessemelhantes, o que dificulta para umas e facilita para outras a chamada “integração competitiva” nas diversas etapas de evolução do capitalismo. Assim, por exemplo, o rápido desenvolvimento do Brasil até o início dos anos 1980 foi sucedido por uma devastadora crise de balanço de pagamentos, deflagrada pelo endividamento imprudente em moeda estrangeira. A crise foi devastadora, mas sua interpretação pela prosopopeia do Consenso de Washington, foi ainda mais danosa.
As palavras de ordem do “novo consenso” eram abertura comercial, liberalização das contas de capital, desregulamentação e “descompressão” dos sistemas financeiros domésticos – com liberalização das taxas de juro – reforma do Estado, incluída a privatização de empresas públicas e da seguridade social, abandono das políticas “intervencionistas” de fomento às exportações, à indústria e à agricultura. As políticas industriais e de fomento coordenadas pelo Estado foram lançadas no rol dos pecados sem remissão.
Joseph Stiglitz faz uma avaliação muito negativa das recomendações do Consenso, as mesmas que encontram guarida na ala direita do debate econômico brasileiro. “O Consenso de Washington representa um conjunto de crenças nos mercados desbragados e na redução do papel do Estado.” Essas crenças, continua Stiglitz, são mais fortes do que recomendariam a teoria econômica e a experiência histórica, mas sobrevivem teimosamente, em descompasso com as estratégias bem-sucedidas dos países do Leste Asiático, onde o Estado teve um papel ativo no processo de desenvolvimento. •
Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A ascensão da China’