Ao lado de Lula no pronunciamento após a reunião bilateral em Brasília, o presidente da China, Xi Jinping, manifestou entusiasmo com os 13 acordos e 24 memorandos de entendimento assinados entre os dois governos. “Nossas relações chegaram a um novo patamar. Nossos países passaram a ser amigos de confiança mútua e futuro compartilhado”, declarou.
Entre uma maioria de acordos em agricultura, educação, saúde e turismo, destaca-se um memorando em torno de uma parceria da Telebras com a empresa chinesa SpaceSail, desenvolvedora de um serviço de internet em alta velocidade, a partir de uma rede de satélites de baixa órbita. A cooperação, segundo o documento, tem como norte a “inclusão digital” e começará pela “realização de estudos sobre a demanda por internet via satélite em locais do Brasil aonde a infraestrutura de fibra óptica não chega”.
A movimentação da SpaceSail faz parte de uma ofensiva generalizada para ocupar um espaço potencialmente aberto no mercado brasileiro, desde que a principal companhia a operar no País, a Starlink, de Elon Musk, passou a ter sua presença contestada. A empresa teve suas contas bloqueadas em agosto pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, como garantia ao pagamento das multas imputadas a outro brinquedo do bilionário, a rede social X, acusada de atentar contra a democracia e as instituições. A principal razão de a Starlink ser incluída na lista dos suspeitos foi, no entanto, o não cumprimento por dias consecutivos da determinação de tirar o X do ar. Naquele momento, ficou claro: do ponto de vista tecnológico, o País havia se tornado refém dos satélites de Musk. A fragilidade ressuscitou o debate sobre a soberania no armazenamento de dados em nuvem.
O Brasil tem condições, no entanto, de desenvolver seus próprios equipamentos
“É importante o Brasil garantir a sua autonomia nacional. Não há razão para uma empresa de Musk controlar as comunicações eletrônicas na Amazônia e em boa parte da Região Norte. O domínio da tecnologia segundo o interesse nacional é uma medida fundamental para evitar ir a reboque e ficar dependente de interesses estrangeiros”, afirma o ex-deputado Liszt Vieira, um dos mais atuantes nesta discussão e autor do livro Cidadania e Globalização. A soberania nacional, ressalta, é um dos alicerces do conceito de nação. “Os Estados se enfraquecem porque não podem mais controlar dinâmicas que extrapolam seus limites territoriais. E as comunicações eletrônicas passam por cima das fronteiras nacionais.”
A Starlink é líder mundial na tecnologia LEO, mas enfrenta concorrentes de peso, entre eles a própria SpaceSail ou o consórcio Kuiper, formado por Sky e Amazon, essa última também uma das líderes mundiais na oferta de serviços de armazenamento em nuvem. De olho em um mercado onde a empresa de Musk controla 265 mil conexões de banda larga via satélite, o equivalente a 0,5% da base nacional em setembro, segundo a Agência Nacional de Telecomunicações, a temporada de assédio de lobistas e empresários a autoridades brasileiras está aberta. O mais assediado, por óbvio, é o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, que, não faz muito tempo, recebeu o presidente da Amazon Brasil, Daniel Manzini, para a apresentação do Kuiper. Segundo o empresário, o projeto terá 3 mil satélites de baixa órbita a partir do próximo ano. “Se tudo funcionar como o planejado, nosso serviço estará disponível no Brasil em 2026.”
Em seguida, foi a vez de o presidente do Grupo Werthein, que controla a Sky, passar pelo Brasil para fazer contatos com autoridades e empresários e anunciar que a operação dos LEOs na América do Sul começará pela Argentina, e que há contratos firmados ou entendimentos adiantados com Uruguai, Chile, Peru, Colômbia e Equador. “Queremos ampliar a inclusão digital no continente. No Brasil, há milhões de domicílios ainda sem acesso à internet. Em regiões com pouca conectividade, a transmissão via satélite é o único meio de informação e entretenimento, e nós temos uma série de soluções para aumentar o acesso aos recursos digitais.” Para Juscelino Filho, o assédio é natural. “A concorrência entre Starlink, Amazon e outras empresas é boa e vai permitir a oferta de melhores serviços, além da redução de custos.”
Resta a pergunta: há mesmo necessidade de o País recorrer aos serviços oferecidos por empresas de fora? Muita gente acha que não. “O Brasil é dono de um satélite e não precisa de estrangeiros a bisbilhotar nossas comunicações”, defende o ex-ministro José Dirceu, também engajado no debate sobre a soberania de dados, em referência ao Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC), lançado em 2017 pela Telebras. A soberania passa ainda pelo fortalecimento das estruturas existentes de governo, afirma o ex-ministro em artigo publicado no site A Terra É Redonda. “Há instituições públicas capazes de dar suporte à infraestrutura da Telebras, que, juntamente com o Serpro, à Dataprev e à Rede Nacional de Ensino e Pesquisa, possui ativos de centenas de milhões de reais que controlam desde o SGDC até uma vasta gama de data centers e serviços digitais, não esquecendo a rede de fibra óptica de altíssima velocidade que atualmente conecta as universidades brasileiras.” Dirceu cita os supercomputadores da Petrobras e os centros de dados do Senai–Cimatec. “Temos uma constelação de equipamentos e dispositivos prontos para servir a este projeto estratégico de soberania digital que o presidente Lula parece ter decidido empreender como uma de suas prioridades até 2026.”
Maior instituição de fomento à inovação do País, a Financiadora de Estudos e Projetos, subordinada ao Ministério de Ciências, investiu, desde o início do atual governo, cerca de 1 bilhão de reais em projetos de Inteligência Artificial e será o principal financiador do Plano Brasil de IA por intermédio do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. “Isso financiará tanto a compra de computadores com grande capacidade de processamento de informação quanto a ampliação em cinco vezes da capacidade de processamento de dados e armazenamento do supercomputador mantido no Laboratório Nacional de Computação Científica e Tecnológica. Esse projeto é estratégico e tem centralidade de ação do governo Lula”, garante Celso Pansera, presidente da Finep.
O retrocesso político, diz Pansera, fez com que o processo para a obtenção de um sistema de tratamento de dados soberano ficasse atrasado no Brasil. “Temos boas tecnologias, conhecimento e domínio para satélites de baixa altitude. Infelizmente, esse programa ficou paralisado ao longo de seis anos e isso, obviamente, retardou o planejamento de uma rede específica própria para dar cobertura às tecnologias estratégicas na transmissão dos dados mais sensíveis de governo, rede de ensino, rede de saúde e monitoramento ambiental, por exemplo. Temos uma boa capacidade de monitoramento, mas precisamos melhorar bastante.”
A soberania de dados é um dos temas centrais deste século
O incremento, diz, depende da contratação de um novo projeto de satélites CBERS, parte de um programa desenvolvido pelo Brasil em parceria com a China. “Sob a orientação do governo, a Finep está investindo nesse projeto. Se não houver interrupção nos próximos oito a dez anos, o programa de satélite do Brasil terá condições de construir um ecossistema de produção muito sólido e competitivo. O País se tornará independente no caso das comunicações mais estratégicas.”
Outro front do governo Lula na defesa da soberania nacional de dados é o IBGE, responsável pela consolidação do Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados (Singed), que tem entre seus objetivos integrar todos os bancos de dados relativos às políticas públicas do governo. “A soberania de dados sintetiza os desafios das nações neste primeiro terço do século XXI”, afirma Marcio Pochmann, presidente do instituto. Diante da marcha atual da transformação digital e com o poder crescente do novo “capital em nuvem”, avalia, a soberania de dados abrangerá cada vez mais as dimensões política e econômica. “Para se manter soberano, o Brasil precisa desenvolver sua infraestrutura de dados a partir de alianças pragmáticas com países tecnologicamente mais avançados e comprometidos com a necessária internalização no sistema produtivo nacional. Do contrário, o País corre o sério risco de aprofundar a sua participação na divisão internacional do trabalho na era digital como grande exportador de commodities, inclusive de dados brutos.”
Enquanto o Brasil não se torna soberano no tratamento de dados, a disputa pelo mercado interno de LEOs segue firme. Dada a dificuldade de espaço para diálogo no governo, os empresários têm apelado a reuniões com representantes da oposição. Uma delas aconteceu em setembro, em Washington, convocada pelo coronel e ex-diretor da CIA Sean Roche, atual responsável pela área de Segurança Global da Amazon, e contou com as participações de parlamentares da Subcomissão Permanente de Defesa Cibernética do Senado, entre eles Sergio Moro, do União Brasil, e Marcos Pontes, do PL, ex-ministros de Bolsonaro. “A discussão deu-se sobre como seriam os possíveis cenários para o mercado de satélites de baixa órbita em um período pós-Lula”, relata um integrante do Itamaraty presente à reunião. •
Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Briga no espaço’