O Supremo Tribunal Federal (STF) discute quatro processos que abordam aspectos fundamentais do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), considerado um marco regulatório do uso da internet no Brasil. As ações têm potencial de redefinir responsabilidades e limites para provedores de serviços digitais, plataformas de redes sociais e aplicativos de mensagens no país.
Os casos foram precedidos por audiências públicas, nas quais representantes do Executivo, do Legislativo, de plataformas digitais e da sociedade civil apresentaram suas posições e ofereceram subsídios técnicos para a análise dos ministros.
Desde o início da tarde, o Tribunal discute a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI), tema central em duas ações que discutem a responsabilidade de plataformas digitais na moderação de conteúdos de terceiros. Com sustentações de representantes das empresas, advogados, ministros e organizações da sociedade civil, o debate reflete a complexidade da aplicação de normas digitais em um cenário em constante evolução.
O ministro Alexandre de Moraes foi enfático ao criticar a dificuldade que usuários enfrentam para remover conteúdos nocivos. Ele compartilhou sua experiência pessoal com perfis falsos atribuídos a ele nas redes sociais, afirmando que as plataformas não demonstram “boa vontade” em atender solicitações legítimas de remoção.
“É óbvio para a plataforma que o perfil não é meu, mas a dificuldade de provar minha identidade é absurda. As plataformas ignoram e, mesmo após a remoção, novos perfis surgem rapidamente”, declarou Moraes.
Responsabilidade civil e decisão judicial
No Recurso Extraordinário (RE) 1037396, a Corte examina o artigo 19 do Marco Civil, que prevê que provedores de internet só podem ser responsabilizados por danos decorrentes de conteúdos ilícitos publicados por terceiros se houver uma ordem judicial prévia para a remoção do material.
O recurso, apresentado pelo Facebook Serviços Online do Brasil, contesta decisão da Justiça de São Paulo que condenou a rede social a excluir um perfil falso e pagar indenização por danos morais. A empresa argumenta que o artigo 19 protege a liberdade de expressão e evita censura privada. A relatoria está a cargo do ministro Dias Toffoli.
Representando o Facebook, José Rollemberg Leite explicou que, na época do caso envolvendo perfis falsos, os sistemas de verificação da plataforma não eram tão avançados quanto hoje. Ele respondeu a questionamentos do ministro Luís Roberto Barroso sobre a demora na remoção de perfis falsos, defendendo que a tecnologia da época limitava as ações da empresa.
Retirada de conteúdo sem ordem judicial
Outro ponto central é o Recurso Extraordinário (RE) 1057258, movido pela Google Brasil Internet S.A., que discute se plataformas têm obrigação de monitorar e remover conteúdos considerados ofensivos sem a necessidade de intervenção do Judiciário.
A empresa alega que tal obrigação seria tecnicamente inviável e representaria uma forma de censura prévia. O caso está sob relatoria do ministro Luiz Fux.
O advogado do Google, Eduardo Bastos Furtado de Mendonça, sustentou que eventuais alterações no artigo 19 devem adotar critérios claros e evitar a imposição de responsabilidade objetiva ou a obrigatoriedade de monitoramento contínuo de conteúdo. Mendonça destacou legislações internacionais, como a Lei de Serviços Digitais da União Europeia, como exemplos de equilíbrio, permitindo notificações extrajudiciais detalhadas como base para remoções sem instaurar censura ou encargos desproporcionais às plataformas.
“No Brasil, em 2023, o YouTube removeu 1.695.261 vídeos por violarem políticas internas, enquanto apenas 614 ordens judiciais foram recebidas no mesmo período”, afirmou o advogado.
Quebra de sigilo e suspensão de serviços de mensagens
Dois processos tratam da possibilidade de suspensão de aplicativos de mensagens, como o WhatsApp, por descumprimento de ordens judiciais para quebra de sigilo:
- A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, apresentada pelo partido Cidadania, questiona decisões judiciais que determinaram o bloqueio do WhatsApp.
- A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5527, movida pelo Partido da República (atual Partido Liberal), questiona dispositivos do Marco Civil que embasam essas decisões.
Em ambos os casos, a discussão central é a proteção do sigilo de comunicações criptografadas. A ministra Rosa Weber, relatora da ADI 5527, defendeu que mensagens privadas só podem ser acessadas mediante ordem judicial, em conformidade com a Constituição e exclusivamente para fins de investigação criminal.
Implicações para o uso da internet no Brasil
O julgamento do artigo 19 foi inicialmente adiado para aguardar a tramitação do chamado PL das Fake News na Câmara dos Deputados, o que não avançou em 2023. O ministro Dias Toffoli, relator de um dos casos, afirmou que o STF precisou retomar a análise devido à falta de consenso legislativo.
No caso específico do Recurso Extraordinário 1057258, o ministro Luiz Fux destacou a origem do processo, que remonta ao tempo da rede social Orkut. A ação questiona a negativa do Google em retirar do ar uma comunidade com conteúdo difamatório contra uma professora, mesmo antes da regulamentação pelo Marco Civil da Internet.
As decisões do STF nesses processos podem ter impacto significativo no ecossistema digital brasileiro. De um lado, empresas argumentam que medidas excessivas podem inviabilizar operações e ferir a liberdade de expressão. De outro, entidades da sociedade civil alertam para a necessidade de responsabilização de plataformas para prevenir danos a indivíduos e preservar direitos fundamentais.
O resultado dos julgamentos deve definir balizas para o equilíbrio entre liberdade, privacidade e responsabilidade no ambiente digital.
O julgamento continua com a apresentação de sustentação oral por entidades da sociedade civil, especialistas e outros representantes das plataformas digitais. A decisão do STF será crucial para definir os limites da responsabilidade das plataformas e poderá influenciar a regulamentação de serviços digitais no Brasil nos próximos anos.