Decadência Americana

por João Silva

A decadência do Império Romano e as supostas vulnerabilidades do “Império” Norte-Americano são casos emblemáticos de trajetórias imperiais marcadas por megalomania e senso de superioridade. Voltam-se contra os próprios impérios.

No auge do Império Romano, a expansão territorial levou Roma a gastar grandes quantias para manter suas legiões e proteger fronteiras em regiões cada vez mais distantes. A manutenção de uma força militar vasta e dispersa sobrecarregou a economia, esgotou recursos e forçou Roma a tributar muito sua população.

Analogamente, os Estados Unidos têm uma extensa rede de bases militares ao redor do mundo e enfrentam custos arcados pelos contribuintes com sua estrutura de defesa global. Em ambos os casos, a percepção de superioridade militar levou à expansão, mas criou um peso no orçamento público difícil de sustentar sem comprometer outras áreas essenciais de suas economias.

Roma se fundava no ideal da “virtus” e da cidadania comprometida. Depois, o ideal romano de cidadão guerreiro e político foi sendo corroído por uma cultura voltada para o luxo, para a extravagância e para o enriquecimento pessoal. Essa decadência moral é comumente apontada como uma das causas da queda de Roma, porque o espírito de sacrifício e de compromisso com o bem comum se esvaiu.

A sociedade norte-americana, antes associada a valores como liberdade, agora tem enfrentado críticas por aumento de desigualdade, consumismo excessivo e individualismo exacerbado. Para os observadores críticos, leva à perda de coesão social e ao enfraquecimento de valores cívicos.

O sentimento dos romanos foi, ao longo do tempo, transformado em um “complexo de superioridade”. Os romanos consideravam os povos “bárbaros” inferiores, incapazes de contribuir para seu “mundo civilizado”.

Isso os tornou relutantes em adaptar-se às mudanças e a reconhecer o poder crescente de outros povos. Desempenharam papéis centrais na queda de Roma.

Nos Estados Unidos, o “excepcionalismo americano” também alimenta uma crença na superioridade inata do modelo americano, com o país se posicionando como líder indispensável e moral do mundo. Essa visão de autoconfiança limita a adaptação e cria resistências à cooperação com outras nações em pé de igualdade.

Roma, em seu auge, tornou-se uma sociedade de luxo com excessos exibicionistas de riqueza. Distorceram sua economia e enfraqueceram suas fundações econômicas. O esgotamento de suas reservas minerais e a inflação, resultante da cunhagem excessiva de moedas, desvalorizaram o denário.

Comparativamente, os Estados Unidos enfrentam uma dívida pública crescente e uma dependência financeira de credores estrangeiros. Sua “megalomania financeira” leva à crença de ser possível manter altos níveis de consumo e poderio econômico sem considerar as consequências em longo prazo, possíveis de representar um risco sistêmico para sua liderança na economia global.

Roma, nos séculos finais, tornou-se altamente fragmentada, com disputas internas entre facções políticas capazes de enfraquecer a autoridade central e impedir uma resposta unificada às ameaças externas. Da mesma forma, os EUA enfrentam polarização política, com divisões profundas entre os partidos (Democrata e Republicano), a elite e a plebe rude, os conservadores e os militantes identitários, dificultando alcançar consensos em questões essenciais e enfraquecendo a unidade nacional e a capacidade de resposta a crises.

Roma resistiu em adaptar suas estratégias e subestimou as forças externas, capazes de pressionar suas fronteiras, desde tribos germânicas até os hunos. Nos EUA, a tendência de subestimar mudanças globais, como o crescimento da China, e de ignorar problemas mundiais urgentes, como mudanças climáticas e realinhamentos geopolíticos, demonstra um padrão semelhante de autoimposição de vulnerabilidade imperial.

Portanto, a decadência romana e os problemas norte-americanos atuais compartilham, por meio dessa analogia, características de expansão desenfreada, desgaste interno, megalomania e complexos de superioridade. Esses fatores minam as próprias bases de sustentação do “poder estrutural”, tornando os impérios cada vez mais vulneráveis a pressões externas e internas.

Na área econômica, a perda de posição dos Estados Unidos como o maior exportador, com a permanência de seu status de maior importador levou-o a ser detentor do maior déficit comercial do mundo. Isso lança questionamentos sobre a sustentabilidade em longo prazo do dólar como moeda padrão no comércio exterior. Embora a moeda norte-americana continue como a principal referência nas finanças internacionais, alguns fatores estão pressionando para que esse domínio seja gradualmente substituído ou, pelo menos, diluído.

O papel do dólar como moeda de referência global estava ancorado em sua confiança, liquidez e aceitação universal. No entanto, o crescente déficit comercial e a elevada dívida pública dos EUA levantam dúvidas sobre a capacidade de o país manter um dólar forte indefinidamente, um dos responsáveis por sua riqueza.

Por isso, outros países começam a acumular menos dólares em reservas e buscam as diversificar com outras moedas. Assim, o papel do dólar vai se enfraquecendo, especialmente, no comércio entre países em busca de alternativas para reduzir sua dependência dos EUA.

Com a ascensão de potências emergentes como a China, a Índia, a Rússia e o Brasil, além da crescente força econômica da União Europeia, mais países têm se interessado em usar moedas regionais ou nacionais para o comércio exterior. A China, em especial, promove o uso do yuan em acordos bilaterais com parceiros comerciais, como Rússia, Brasil e alguns países africanos, como forma de reduzir a dependência do dólar. Essa tendência não elimina imediatamente o dólar, mas indica uma fragmentação do sistema monetário global.

O surgimento das criptomoedas e a possibilidade de emissão de moedas digitais por bancos centrais ou mesmo por grandes corporações (inclusive o projeto natimorto da Libra do Facebook) representam uma alternativa inovadora ao sistema monetário baseado no dólar. As criptomoedas, com base na tecnologia blockchain, oferecem descentralização e possibilidade de transações internacionais sem intermediários, reduzindo a dependência das moedas fiduciárias tradicionais, inclusive o dólar.

Contudo, para essas moedas privadas via blockchain substituírem o dólar, seriam necessários avanços na regulamentação, segurança e estabilidade dessas moedas, bem como uma aceitação ampla por governos e instituições financeiras. A emissão de moeda privada por meio de blockchain, se fosse amplamente adotada e regulamentada, competiria com o domínio do dólar até na área financeira, já ameaçado na área comercial.

Grandes empresas de tecnologia ou consórcios financeiros, caso emitissem moedas digitais respaldadas por reservas de várias moedas ou ativos, criariam uma alternativa ao dólar no comércio internacional. No entanto, é improvável moedas privadas conseguirem substituir integralmente o dólar em curto prazo, dado o forte controle regulatório dos Estados nacionais e as resistências dos Bancos Centrais. Todos eles temem perder poder de controle sobre sua política monetária.

Frente ao avanço das criptomoedas, Bancos Centrais de várias economias importantes, incluindo China e União Europeia, têm desenvolvido suas próprias moedas digitais, conhecidas como CBDCs (Central Bank Digital Currencies). Essas moedas digitais estatais tentarão oferecer os benefícios da blockchain com a segurança e a estabilidade das moedas tradicionais, mas sob controle estatal.

Se essas CBDCs se tornarem amplamente usadas, contribuirão para um sistema monetário internacional mais diversificado. Nele, o dólar ainda seria uma referência, mas compartilharia mercado com outras moedas digitais estatais.

Uma barreira grande para uma moeda privada ou criptomoeda substituir o dólar reside na falta de respaldo oficial e na volatilidade ainda característica das criptomoedas, além da resistência governamental. A maioria dos países considera a política monetária um aspecto central de sua soberania.

Desse modo, é improvável permitirem moedas privadas ultrapassarem as moedas fiduciárias nacionais. Em vez disso, é mais provável as criptomoedas e outras moedas privadas atuarem como complementos em áreas específicas, como remessas internacionais e transferências de valor, mas sem substituírem o papel sistêmico do dólar.

Então, apesar da decadência americana, o dólar ainda tem uma posição central nas finanças globais e no comércio internacional. Enfrenta problemas para manter sua hegemonia. É possível surgir um sistema de múltiplas moedas de referência, inclusive moedas digitais e regionais, fragmentando o papel absoluto do dólar.

A tecnologia blockchain oferece oportunidades de novas formas de moeda, mas, para substituir o dólar, essas moedas privadas ou digitais precisarão superar barreiras de regulamentação, estabilidade e aceitação ampla. Enfim, essa transição sistêmica será gradual e complexa, isto é, emergente de múltiplos fatores interativos.

Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected]

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Last Update: 26/11/2024