Brasil e China: um relacionamento sustentável
por Luís Silva
O sucesso econômico da China nos últimos 45 anos é impressionante e tem produzido um contingente numeroso de admiradores desse caminho de transformação de uma economia subdesenvolvida na mais nova potência econômica global. Símbolos desse sucesso são os projetos de alta tecnologia, a rede ampla de ferrovias de alta velocidade, o número de pessoas promovidas da pobreza a condições de consumo dignas. Ponto para a China.
Os admiradores do sucesso chinês têm deixado de registrar alguns efeitos indesejados dessa trajetória para o Brasil (e muitos outros países). O relacionamento com a China tem sido cada vez mais caracterizado pela desigualdade. O Brasil vende à China commodities primárias e compra produtos industriais de todos os tipos, desde os intensivos em trabalho aos manufaturados com graus mais elevados de conteúdo tecnológico. O crescimento econômico chinês puxa a produção primária brasileira e contribui decisivamente para as dificuldades que a indústria tem enfrentado.
O conhecimento acumulado sobre as trajetórias econômicas dos países permite compreender que o enriquecimento dos padrões de produção nos estágios avançados aumenta a proporção de serviços e reduz a proporção da produção industrial. Essa é a explicação principal da perda (relativa) da indústria na Alemanha, nos Estados Unidos e no Japão. O avanço chinês toma uma fatia adicional, mas não é o principal. No Brasil, a perda industrial não se explica pelo enriquecimento dos padrões de consumo, com fatias crescentes de serviços. É desindustrialização pura e dura. Não podemos culpar a China pelas nossas mazelas, mas o nosso padrão de relacionamento agrava o problema: o boom de commodities contribui para valorização da nossa moeda e com isso para as dificuldades da indústria. A migração de capitais da indústria para o setor primário reforça a perda de dinamismo industrial.
Os dados são muito claros. O Brasil, pelo seu nível de renda per capita, não deveria ter uma fatia da indústria no PIB do nível que têm os Estados Unidos, com uma renda 4 vezes maior.
A trajetória histórica dos grandes países industriais e dos emergentes, incluindo neste rol a China e o Vietnã, mostra que a fatia da indústria no PIB se eleva junto com o crescimento do próprio PIB. O vínculo entre ambos tem sido esmiuçado desde a sua apresentação pioneira da Riqueza das Nações de Adam Smith. A indústria, ao materializar soluções técnicas superiores para a produção primária, industrial e de serviços, cresce e faz crescer, um processo que nos países industrializados pioneiros durou um século ou mais. Depois de um certo estágio de desenvolvimento da renda média dos países industrializados pioneiros, os serviços passam a crescer mais rapidamente (do que a indústria) e portanto a sua fatia no PIB passa a crescer (e a da indústria, reduz-se). Este movimento de subida-e-descida da fatia da indústria no PIB levou, nos industrializados mais avançados, muitos anos e foi um pouco reforçada pela extraordinária transformação da China, que passou a exportar produtos industriais e atraiu muitas empresas dos grandes países industriais (Alemanha, Estados Unidos, Japão). O Brasil pulou a etapa do crescimento do PIB e da fatia da indústria e desindustrializou-se em curto período de tempo, sem ter enriquecido (elevado o PIB per capita) nesse caminho. Se os países ricos da América do Norte, da Ásia e do Japão, altamente industrializados, vêm perdendo a competição industrial com a máquina chinesa, dificilmente poderia o Brasil enfrentar essa potência industrial e tecnológica que se tornou tão poderosa neste século. Por isso é necessário repensar a relação do Brasil com a China, também, mas não apenas, no setor industrial.
Os investimentos chineses no Brasil também têm contribuído muito pouco para o desenvolvimento brasileiro. Comprar empresas de serviços de utilidade pública, realizar investimentos incrementais mínimos e obter rendas de monopólio elevadas era o que faziam capitais ingleses, estadunidenses e canadenses na primeira metade do século 20 (em empresas de transporte urbano e companhias de energia elétrica).
Esse modelo de relacionamento não pode dar certo. Foi contra um modelo dessa natureza, desigual, assimétrico e frustrante, que o Brasil e tantos outros países da América Latina, da Ásia e da África formularam projetos de desenvolvimento e industrialização. Foi também pelo exame crítico de tantos erros fundamentais cometidos por alguns países da América Latina e de outras regiões que a China foi capaz de colocar em marcha um modelo de inserção internacional superior – a começar por suas relações com as grandes empresas estrangeiras, integrantes dos oligopólios industriais de setores destacadamente importantes (como máquinas, equipamentos, veículos, eletrônicos). O acesso ao mercado chinês e ao dinamismo da sua base de produção foi condicionado pelo governo da China a uma série de exigências que contribuíram para a fulgurante trajetória industrial e econômica do país.
Não será a China a propor ao Brasil e aos países que pouco a pouco vão estando na sua órbita o novo relacionamento. A China quer mercado para os seus produtos e acesso aos alimentos, minérios e petróleo brasileiros, como de todos os demais países. Pode pensar em comprar mais empresas nos setores que geram retornos assegurados – como os serviços de utilidade pública, prioritariamente. Investimentos industriais? Não são prioridade. Transferências de tecnologia? Em troca de quê? A China certamente prefere apoiar projetos de infraestrutura que perenizem o relacionamento atual: ferrovias, rodovias e portos que contribuam para assegurar custos logísticos reduzidos para as suas compras de commodities no Brasil e na América Latina (como na África). Deslocar os fluxos comerciais para o Pacífico é do interesse chinês, sobretudo. E os projetos de infraestrutura necessários vão viabilizar o mundo sinocêntrico.
Não, isso não serve ao Brasil, mesmo que possa beneficiar alguns setores brasileiros. Cabe ao Brasil, a quem este relacionamento oferece pobres perspectivas, propor um novo padrão. Tem faltado uma reflexão sobre as alternativas. Eis aqui algumas.
É o boom chinês que tem estimulado fortemente a expansão da agricultura de larga escala especializada em commodities, que arrasta com ela a devastação da floresta amazônica e do cerrado. O novo modelo de relacionamento deveria prever um fortíssimo apoio financeiro da China ao reflorestamento e à mitigação dos efeitos ambientais associados à produção da monocultura que predomina no centro-oeste, no arco do desmatamento amazônico e na região que se denomina hoje Matopiba (por reunir áreas adjacentes dos quatro estados da sigla: Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). O beneficiário da produção de commodities agrícolas deve compartilhar as responsabilidades de mitigar os efeitos que a sua produção em larguíssima escala provoca.
A valorização cambial promovida pelas exportações de commodities tem contribuído também para o declínio da indústria. Assim como a China demandou das empresas estrangeiras que queriam entrar na China contrapartidas, o Brasil deve propor contrapartidas à China no setor industrial. Empreendimentos conjuntos (ou joint-ventures) são um modelo amplamente praticado na China e o Brasil praticou esse modelo, por exemplo, no setor petroquímico (modelo tripartite) nos anos 1970. Haveria alguns setores mais adequados para esse modelo e há uma reflexão que precisa ser feita pelos especialistas setoriais que existem na academia e nas empresas do Brasil, além do setor público (MDIC, MCTI, ABDI, FINEP, BNDES). Como exemplo, mais para inspirar do que para elencar, avança-se aqui a fabricação de veículos de transporte de motores elétricos, de passageiros e de cargas. O Brasil possui uma extraordinária empresa de motores elétricos e ela poderia ser uma parceira desse empreendimento conjunto. Caminhões e ônibus elétricos fabricados no Brasil, em um empreendimento conjunto, deveriam ser um produto global brasileiro-chinês. Esse empreendimento deveria ser dínamo para outras atividades de natureza tecnológica e industrial: avanços na motorização, componentes para as baterias, elementos de automação dos veículos.
O terceiro eixo do novo padrão de relacionamento entre o Brasil e a China deveria ser a cooperação científica. O projeto do satélite é antigo, foi uma boa iniciativa, teve alguns resultados, mas é pouco. Precisamos de ampliar, reforçar e equalizar o nosso relacionamento nesse campo. Precisamos aprender, como fez a China, a trazer a ciência para a tecnologia e a produção, com vigor e rapidez. Intercâmbio de pesquisadores e programas de pesquisa conjuntos deveriam lastrear e robustecer o novo padrão de relacionamento com a China.
A admiração de tantos brasileiros pelo sucesso econômico chinês tem dificultado o exame realista do nosso relacionamento com o gigante asiático e – a cada dia mais – mundial. Se queremos dar perspectivas harmoniosas para esse relacionamento, precisamos repensá-lo e construir alternativas. Elas precisam ser mutuamente vantajosas. Estamos longe desse ganha-ganha.
Luís Silva, economista, especialista em temas ligados à indústria e às políticas para o desenvolvimento. Casado, tem 3 filhos.
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