O movimento da rede de supermercados Carrefour, que ameaçou barrar a compra de carnes de países do Mercosul e se retratou após críticas, não é isolado. Ele coincide com a realização de uma nova rodada de negociação do acordo entre o Mercosul e União Europeia, que começa nesta terça-feira 26, em Brasília.
O grupo francês deu voz aos apelos de agricultores locais, que, há tempos, reclamam do fato de que uma eventual concretização do acordo poderia colocá-los em más condições de competir com os produtos sul-americanos, incluindo os do Brasil.
Apesar do recuo da companhia francesa, as divisões vieram ainda mais à tona, nesta que é uma semana de maior importância nas tratativas. No DF, o governo brasileiro sentará à mesa com representantes europeus, incluindo o negociador-chefe da UE, Rupert Schlegelmilch.
Enquanto as reuniões acontecem em Brasília, a Assembleia Nacional francesa também discutirá, nesta terça, o acordo. A ideia é que o Legislativo rechace o tratado comercial, que é criticado pela direita e pela esquerda da França.
O Itamaraty evitou dar detalhes sobre a reunião e, oficialmente, não comentou as expectativas sobre se o acordo deve ou não sair do papel. A depender das conversas, os encontros deverão se estender até a próxima sexta-feira 29.
Do lado brasileiro, estarão presentes representantes dos ministérios das Relações Exteriores; Meio Ambiente e Mudança do Clima; Desenvolvimento, Indústria e Comércio; Agricultura e Pecuária; Ciência, Tecnologia e Inovação; e Gestão e Inovação em Serviços Públicos.
Caso os detalhes técnicos sejam acertados, a ideia seria anunciar, finalmente, o acordo entre os dois blocos na reunião de cúpula do Mercosul, que acontecerá nos dias 5 e 6 de dezembro, em Montevidéu, no Uruguai.
O próprio ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, que esteve envolvido no rol de críticas ao anúncio do Carrefour, já tinha reconhecido, durante a reunião do G20, no Rio de Janeiro, que esperava anunciar o acordo na capital uruguaia. “Os avanços são bastante animadores para que se chegue a um bom termo”, disse Fávaro ao jornal Valor Econômico. “Nunca estivemos tão perto desse acordo”, confessou.
Quem defende e quem rechaça
No estado atual das negociações, o Brasil, entusiasta sul-americano do acordo, conta com o apoio de um ator europeu de peso: a Alemanha. Já no Rio, o chanceler alemão, Olaf Scholz, também cobrou urgência para que o acordo seja fechado, aproveitando para sugerir mudanças na maneira como a própria UE conduz as suas negociações.
“Os acordos comerciais foram delegados à União Europeia pelos estados europeus. Mas não com a intenção de que isso resultasse em menos acordos, mas, sim, em mais”, afirmou. Dizendo-se um “defensor explícito dos chamados acordos exclusivos da UE”, ele defendeu que o bloco fosse menor rígido em relação às suas diretrizes.
Do lado brasileiro, a demanda é para que os europeus não apliquem as suas regras tarifárias contra produtos vindos de países que não alcancem metas contra o desmatamento. Baseada em medidas de proteção ambiental, o bloco pode fazer valer o seu protecionismo e aplicar tarifas elevadas, o que desagrada o Mercosul.
Apesar do apoio da Alemanha – bem como Espanha e Portugal – pelo fechamento do acordo, a principal resistência europeia vem da França. E não se restringe ao Carrefour, que é um ator privado no jogo. O próprio governo francês se movimenta para impedir a concretização de um tratado flexível demais para os padrões europeus.
Do ponto de vista estritamente político, a resistência do governo Emmanuel Macron aos termos tem a ver com a correlação de forças no país. O atual mandatário – que fica no poder até 2027 – teme que a assinatura ponha ainda mais lenha na fogueira de repúdio dos agricultores, fazendo com que a categoria suba ainda mais o tom na defesa do nacionalismo.
Politicamente, as condições seriam favoráveis à extrema-direita, cujo apego à pauta nacionalista é histórica. O bloco liderado por Marine Le Pen, inclusive, é contra o acordo UE-Mercosul.
Os ecos das resistência francesa também ecoam em outros países do bloco. Também nesta terça-feira 26, o primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, foi mais um a demonstrar oposição. “A Polônia não aceita, e não estamos sozinhos, não aceitaremos nessa forma o acordo com os países da América do Sul, que é o grupo Mercosul, sobre livre comércio”, sintetizou Tusk.
Longa negociação
A ideia do acordo entre os dois blocos, que se arrasta há mais de duas décadas, é criar um mercado comum de quase 800 milhões de pessoas. Analistas estimam que o fluxo de comércio poderia girar na casa dos 274 bilhões de reais, envolvendo uma longa lista de produtos agrícolas e manufaturados.
O acordo chegou a ser finalizado em 2019, ainda nos tempos do governo Jair Bolsonaro (PL). Ele não foi colocado em prática por força do próprio bloco europeu, que se viu alarmado diante da desenfreada postura pró-desmatamento do ex-capitão.
A própria mudança de governo no Brasil, com a chegada de Lula (PT) ao poder, criou as condições para que a UE passasse a exigir – e sentir que pode ser cumprida – metas ambientais para que o acordo seja concretizado. Exemplo disso está na inclusão recente de um item que estabelece que os produtos do Mercosul exportados para a Europa devem ser chancelados com um tipo de ‘selo verde’.