Sara Vivacqua, do DCM, e Lula ladeados por Joseph Farrell (esq.) e Kristinn Hrafnsson, do Wikileaks (Fotos Cláudio Kbene)

O vôo VJT199, que saiu do aeroporto de Standstead em Londres na segunda-feira e que levava o jornalista e editor Julian Assange, aterrissou nas ilhas remotas de Saipan, no Oceano Pacífico.

Assange se opôs a viajar aos Estados Unidos para firmar o acordo que lhe fará um homem livre, e foi levado a esse território, parte da empreitada expansionista americana na região como estratégia de sua guerra híbrida contra a China.

Ele assinará um acordo diante de um juiz americano, e por fim seguirá para a Austrália como um homem livre. Deve chegar a Canberra no dia 26 às 18:41 no horário local.

Assange se declarará culpado do crime de conspiração com Chelsea Manning por obter e disseminar de forma ilegal informações confidenciais de segurança nacional dos Estados Unidos, em contravenção com o Artigo 18 da Lei de Espionagem de 1917. Sempre há um preço para a liberdade.

Sara Vivacqua, advogada e jornalista do DCM, foi peça fundamental da campanha oficial de libertação de Assange em Londres. Deu reconhecimento mundial ao caso ao inquirir o presidente Lula numa coletiva em Londres, mas seu maior trabalho foi realmente o da diplomacia nos bastidores, que ela conta em exclusividade ao DCM:

Stella Assange viajou à Austrália com os dois filhos um dia antes de Assange embarcar e apenas um grupo muito restrito tinha conhecimento disso, como o editor chefe do Wikileaks e talvez seu pai. A produtora pessoal de campanha da Stella, seu melhor amigo e os demais sabendo da notícia pelas manchetes.

Segundo Stella, esse acordo tornou-se possibilidade na semana passada, no dia 19, mas como realidade apenas nas últimas 72 horas e tudo se desencadeou muito rápido. Até então tudo permanecia incerto.

As negociações deste acordo começaram no ano passado, envolvendo vários advogados, e por ser uma estratégia confidencial, nunca falei em público sobre isso. Até que uma entrevista do ex-agente da CIA, John Kiriakou, revelou ao jornalista Pedro Zambarda no DCM a existência de tais negociações. Depois seguiram-se comentários especulativos, mas a liberdade de Assange era mais importante e, claro, me cabia proteger esta informação. Na minha opinião essa era a única saída plausível para a sua liberdade, mas com resultados muito incertos e que só teria impulso para acontecer se a pressão política escalasse.

É preciso lembrar o contexto em que Lula e o então presidente Obrador, do México, falaram em favor de Assange pela primeira vez.

Fizemos as malas num ambiente de muita descrença. O presidente Gustavo Petro nos recebeu na Colômbia a partir da articulação do brasileiro Amauri Chamorro. Lula nos recebeu já como presidente eleito em meio a um dos momentos mais conturbados do governo de transição e depois de passar por uma cirurgia. Aqui tenho que prestar minha imensa gratidão à equipe do Lula, em especial ao assessor José Chrispiniano, que sempre atendeu meus pedidos e telefonemas. Um homem de grande paciência.

Era a primeira vez que o WikiLeaks era recebido por chefes de Estado. Esse era um marco, pois Obrador tinha recebido a família de Assange, que poderia ser visto como um gesto humanitário. Mas receber o WikiLeaks era uma posição muito mais audaz em conteúdo, pois implicava em declarar Assange preso político dos EUA e Reino Unido, vítima de uma perseguição, e implicava numa denúncia política frontal por chefes de Estado contra os países que o perseguiam.

Um dia depois da recepção pelo presidente Lula, o primeiro-ministro australiano saiu a público no parlamento australiano e declarou que o caso de Assange já tinha ido longe demais. Não creio que fosse mera coincidência, mas o encorajamento que faltava. Lula é sem sombra de dúvida um dos grandes líderes mundiais de nosso tempo.

Alberto Fernández, Cristina Kirchner, Luis Arce e Obrador logo depois do encontro com Lula, aceitaram o pedido de receber o WikiLeaks.

Uma onda de apoio inédita se fazia na América Latina, que contrastava com o silêncio das demais autoridades de outros países.

Durante estes anos guardei uma parte da conversa com Lula, que foi tocante, mas naquele momento era confidencial. Lula prometeu conversar com Biden, presidente dos EUA, sobre Assange.

No Brasil, João Pedro Stédile e o MST organizaram a agenda parlamentar e cultural do WikiLeaks que resultou em uma resolução na Câmara e outra no Senado em favor de Assange, encontro com grandes nomes brasileiros  eventos na sociedade civil.

Membros ilustres da Comissão Arns de Direitos Humanos se somaram e Lula falou sobre Assange na Assembléia da ONU em Nova York setembro de 2023, o primeiro líder a falar sobre o tema numa tribuna internacional.

Lula entregou a nosso pedido uma carta de Stella Assange ao Papa Francisco, que três dia depois a recebeu no Vaticano.

Em solo britânico, na ocasião da coroação do rei Charles III, e depois de conversar com o primeiro-ministro Rishi Sunak, Lula foi o primeiro e único chefe de Estado a falar que a ação inglesa era ilegal e tinha que ser revertida. Lula continuou seu tour pela Europa falando sobre o caso Assange. Sempre acreditei que, para ele, a questão Assange era pessoal, Lula sabia o que era ser perseguido injustamente por estar a vanguarda de seu tempo e por desafiar o poder.

A luta política não é diferente e as grandes mudanças geralmente se manifestam primeiro nas suas formas mais invisíveis antes de se tornarem visíveis. Grandes líderes passaram por grandes provações. Mas a natureza humana ocidental é muito materialista e imediatista. Acho que muitas possíveis vitórias passam despercebidas por nós.

Da luta, posso falar do meu processo individual. Primeiro, a perda da inocência numa forma de idealismo puro quando se lida com grandes causas e ideias. Nem todos integram uma luta pelas mesmas razões, e os desafios internos entre os “iguais” podem ser muito mais duros e injustos que os externos.

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 01/07/2024