A tensão está no ar e nossa reação não tem sido apropriada
por Luís Carlos
Ao caminhar pelo centro e pegar transporte público em São Paulo, dá para notar que os tempos não andam bons. No metrô, praticamente a cada duas semanas tenho pelo menos um atraso na minha viagem, por conta de usuário na via – e faço cerca de 15 viagens por semana. Pelo centro, presencio discussões e brigas toda semana, mais de uma, às vezes. Há uma tensão geral, uma pressão difusa, que não tem encontrado uma válvula de saída que não a violência bruta (contra si ou contra alguma outra pessoa, não raro alguma minoria).
A violência desta semana começou cedo, já na segunda-feira, a caminho do trabalho. Na rua Direita, uma pessoa grita: “Se uma pessoa do gênero não-binário estivesse te comendo você não estava me enchendo, sua homofóbica nojenta! Chama a política porque eu dei na tua cara, chama, seu transfóbico!”. Só então reparo que a pessoa que grita é uma transexual de poucas posses. O carro da polícia passa, o homem – também ele de poucas posses – não fala nada, e eu sigo meu caminho sem ver se a primeira pessoa tentou fazer valer seu direito – mas acredito que não: por ser trans e pobre, a PM não vai se incomodar com “apenas” um caso de transfobia na rua.
Isso me fez lembrar de uma das últimas postagens que vi no twitter, um fio com fascistas apanhando após agressões racistas.
Reconheço ter um certo regozijo em ver as imagens desse tipo de gente apanhando – ainda que eu sinta falta da força da lei aparecer logo em seguida para autuar o racista. Contudo, há um lado profundamente triste nessas cenas também: fico a imaginar quanto essas pessoas que reagem a (mais) essa agressão já não sofreram. Para chegar no nível de raiva que o fio apresentava, dificilmente vai ser uma provocação isolada que servirá como disparador: é uma vida toda de preconceito e racismo, descontado em um gesto, e que pouco servirá para evitar agressões futuras – mesmo para reparar alguma agressão passada.
Um dos fatores de crescimento da extrema-direita é justamente ser capaz de identificar essa raiva sob pressão e dar vazão a ela, ainda que da forma mais tosca, mais bruta, menos elaborada -, como violência pura e simples. As esquerdas seguem sofrendo em dialogar com afetos políticos dessa natureza, seguem atuando na base de racionalidades política (no sentido amplo de política) que remetem a Rawls, em que se pode tolerar os extremistas porque com o tempo eles “caem” para o centro; ou à Grécia antiga, identificando o bom, e belo, o justo e o verdadeiro – como se uma pessoa ser de extrema direita fosse um problema cognitivo ou de educação, como disse (por outros termos) Boulos no Flow, e não uma questão de posicionamento perante o mundo, muitas vezes muito bem informado -, bases que se mostram cada vez mais caducas nos tempos atuais. Não se trata de negar ou tentar esvaziar essa raiva, mas canalizá-la para mudanças sociais via processos não fascistas (que inclui a violência bruta e o rebaixamento do outro).
Ou as esquerdas aprendem – e logo – a analisar e se movimentar nestes tempos, ou fenômenos políticos como o capitão expulso do exército e o coach da montanha serão cada vez mais fortes.
Luís Carlos é escritor e funcionário público. Filósofo e Sociólogo formado pela Unicamp, Mestre em Filosofia pela PUC-SP (se debruçou sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord), Psicanalista em formação. Autor, dentre outros, de Trezenhum. Humor sem graça. (Ibiporã 1011) e Linha de Produção/Linha de Descartes (Editora Urutau).
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