CartaCapital me incumbiu de compor este artigo sobre Getúlio Vargas, para rememorar os 70 anos de sua morte. Tarefa difícil. Não por faltarem fontes ou pontos de vista diversos, mas por Vargas ter sido uma figura política – adianto que, para mim, a maior de nossa história – controversa e multifacetada.
Nascido em uma rica família de estancieiros do oeste gaúcho, Vargas formou-se em Direito e logo engajou-se na política local, influenciado pela ideologia positivista. Ocupou cargos legislativos, tornou-se ministro da Fazenda e governador. Candidatou-se pela oposição, com pouca esperança, à Presidência da República em 1930, em uma eleição controlada pelo establishment.
Vargas buscou modernizar as relações econômicas e sociais do País. Sua ideologia, depois chamada de nacional-desenvolvimentismo, incluía regular as relações trabalhistas, os sindicatos e fortalecer a indústria e a agricultura. Datam desses anos de governo provisório as primeiras iniciativas de legislações de proteção ao trabalhador (ainda que de forma restrita aos trabalhadores registrados, o que ainda deixava de fora boa parte do povo).
Vargas reforçou sua imagem de líder de massas, falando ao povo sem mediações, em grandes comícios ou por meio da Rádio Nacional, que alcançava boa parte do País. Consolidou-se sua imagem de “pai dos pobres”, em virtude da criação do salário mínimo, férias anuais, descanso semanal remunerado e outras leis, compiladas na CLT, decretada com grandes pompas num comício popular no 1º de Maio de 1943, data que passara a ser cultuada pelo governo com desfiles e festas populares, convertida em estratégia de propaganda do regime.
A decantada habilidade política de Vargas foi testada em nível internacional, com a crescente hostilidade entre as potências do Eixo e os Aliados. Vargas, com destreza, acenava aos dois lados, em busca de vantagens para o Brasil. Muitos de seus aliados simpatizavam com o nazifascismo, mas Vargas logrou obter financiamento e tecnologia dos EUA para passar a produzir aço no País.
Vargas salvou o capitalismo dos capitalistas nativos
Ao fim da guerra, o espaço de manobra internacional encurtou-se. Os Estados Unidos se voltaram para a Europa e o Japão, temendo o avanço da União Soviética. O Brasil, que se considerava credor da gratidão estadunidense, perdeu relevância. A desmobilização da indústria de guerra e sua reconversão e a previsível reconstrução da indústria nos países mais afetados reduziu o acesso brasileiro aos mercados.
A industrialização por substituição de importações, ensinou a mestra Maria da Conceição Tavares, carrega uma contradição interna. A necessidade de divisas para a importação acentuava-se à medida que a indústria se ampliava, mas ainda não tinha a necessária escala para competir, colocando mais pressão sobre o balanço de pagamentos e a política cambial.
Em resposta, Vargas estabeleceu leilões cambiais, apertando o controle sobre as divisas, e buscou contornar resistências à ampliação do espaço fiscal. Criou o BNDE, a fim de aliviar a questão do financiamento à indústria, propôs a criação da Eletrobras e fundou a Petrobras, no rastro do movimento popular “O Petróleo é Nosso”, nacionalizando a exploração dessa riqueza.
Logo Vargas foi sendo encurralado. A barulhenta oposição da UDN, liderada por Carlos Lacerda, bradava que o governo era “um mar de lama”, utilizando-se habilmente da mídia. A classe média crescia em insatisfação. Vargas decidiu voltar-se diretamente para o povo, instituindo vantagens previdenciárias e dobrando o salário mínimo no comício de 1º de Maio de 1954, o que agravou os temores dos conservadores.
Sua morte desencadeou revoltas espontâneas contra a mídia e a oposição, gerou enorme comoção popular e conteve as intenções estadunidenses de forçar a revisão da política de exploração mineral. Na Carta-Testamento que deixou denunciava as pressões externas, as tramas antinacionais, colocando-se como um mártir das causas populares.
Seu legado é extenso, duradouro e inestimável, na política social, no desenvolvimento econômico, na construção do Estado e na melhora das condições de vida, apesar de seu paternalismo, realçado no período autoritário.
Até hoje, decorridos 70 anos de sua morte, seu nome é respeitado pelos que o vivenciaram, os que conhecem a História e os defensores dos direitos sociais e da autonomia nacional, tanto quanto atacado pelos setores conservadores. Há quem diga, talvez com certo exagero, que Vargas salvou o capitalismo brasileiro de seus capitalistas.
A Carta-Testamento, reforçando o mito de Vargas, termina dizendo: “Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente, dou o primeiro passo no caminho da imortalidade e saio da vida para entrar na História”. •
*O autor é economista.
Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O legado de Vargas’