O desfile com uma matilha de motoqueiros pela Zona Leste de São Paulo não foi exatamente como Pablo Marçal sonhava. Até pouco tempo, o coach acreditava ser possível pular na garupa de Bolsonaro após escalar as pesquisas de intenção de voto na capital paulista. Ao alcançar o prefeito Ricardo Nunes, candidato à reeleição pelo MDB com o apoio do ex-presidente, Marçal passou a ser visto, porém, como uma ameaça à hegemonia política do capitão na extrema-direita. De fato, o triunfo deste denodado soldado bolsonarista na cidade mais rica e populosa do País não seria exatamente um presente. Inelegível até 2030, Bolsonaro talvez esteja diante de um possível substituto, mas com luz própria. Não por acaso, o antigo aliado já é apontado por analistas como seu Cavalo de Troia.
Como é de conhecimento até do mundo mineral, Cavalo de Troia foi o astuto estratagema usado pelos gregos para despistar os sentinelas e invadir, sem reação, a fortificada cidade inimiga há mais de 3 mil anos. É também o apelido de um famoso malware que sequestra dados confidenciais de usuários de computadores. Esse aplicativo malicioso era utilizado por uma quadrilha desbaratada pela Polícia Federal em 2005, no curso da Operação Pégasus. Então com 18 anos, Marçal associou-se ao bando. Além de fazer a manutenção dos PCs usados pelos criminosos, ele operava um programa responsável por captar e-mails de potenciais vítimas, induzidas a clicar em links de sites que instalavam o vírus para roubar seus dados bancários. Após delatar comparsas, o então técnico de informática foi liberado pela PF para responder ao processo em liberdade. Condenado a 4 anos e cinco meses de reclusão por furto qualificado em 2010, beneficiou-se da letargia do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que tardou a julgar um recurso da defesa. Em razão da demora, houve prescrição punitiva. Mesmo culpado, Marçal livrou-se do cumprimento da pena.
O ex-coach cresceu nas pesquisas e pode tirar Ricardo Nunes, apoiado pelo capitão, do segundo turno
Hoje, o coach é o candidato mais rico a disputar a prefeitura paulista. Sua ascensão financeira é tão nebulosa quanto as declarações patrimoniais entregues à Justiça Eleitoral. Inicialmente, afirmou possuir bens avaliados em 193,5 milhões de reais. Após o portal UOL revelar que Marçal não incluiu uma empresa da qual é sócio e subvalorizou outras duas, uma omissão de 22 milhões, o candidato retificou sua declaração. Sem acrescentar a empresa omitida, retirou da lista de bens dois investimentos em letras de crédito. O valor atualizado ficou menor, 169,5 milhões. Ainda assim, teve uma formidável evolução patrimonial nos últimos dois anos. Nas eleições de 2022, quando disputou uma vaga na Câmara dos Deputados, afirmou à Justiça possuir 96,9 milhões de reais. De lá para cá, a riqueza cresceu 74%.
Marçal se apresenta como um self-made man. Dois anos após a prisão por envolvimento na “maior quadrilha de piratas da internet brasileira”, como a Folha de S. Paulo definiu à época – a Operação Pégasus resultou no cumprimento de 105 mandados de prisão –, conseguiu emprego no call center da Brasil Telecom. Em seis anos, teria chegado ao posto de gerente de operação da companhia telefônica, de onde saiu para investir no mercado imobiliário. Após conquistar seu primeiro milhão, passou a vender cursos de empreendedorismo, além de livros de autoajuda.
Foi assim, vendendo sonhos de rápida ascensão financeira, que fez fortuna e colocou em perigo vários de seus seguidores com seus heterodoxos métodos de treinamento de líderes. Até hoje responde a um processo criminal por ter conduzido, na primeira semana de 2022, cerca de 60 alunos ao topo do Pico dos Marins, no interior de São Paulo, em condições climáticas adversas, com frio intenso e visibilidade reduzida. Contrariando os alertas de guias, deu seguimento à expedição destinada a forjar “generais do topo” e o Corpo de Bombeiros precisou ser acionado para socorrer 32 desaparecidos, já com sinais de hipotermia. Em junho de 2023, um de seus funcionários, Bruno da Silva Teixeira, de 26 anos, não teve a mesma sorte. Perdeu a vida após participar de uma “maratona surpresa” de 42 quilômetros, organizada pela Plataforma Internacional, ligada ao coach. Na verdade, ex-coach. Hoje, Marçal se apresenta como um Chief Visionary Officer, seja lá o que o pomposo título autoconferido queira dizer.
O “visionário” conquistou a confiança dos bolsonaristas ao usar suas redes sociais para propagar a delirante história de que os governos petistas distribuíam “kit gay” nas escolas, uma das principais fake news das eleições de 2018, e ao sabotar as medidas de isolamento social durante a pandemia. De lá para cá, só parou de bajular Bolsonaro quando tentou se candidatar à Presidência da República em 2022, mas dirigentes do seu antigo partido, o PROS, desistiram de lançá-lo candidato e o Tribunal Superior Eleitoral se encarregou de sepultar de vez o projeto, ao negar o registro da candidatura. A reconciliação com o capitão veio a galope.
Inelegível até 2030, Bolsonaro se depara com um possível substituto, mas com luz própria
Bolsonaro nunca escondeu que Nunes não era o seu candidato dos sonhos em São Paulo. Preferia lançar Ricardo Salles, seu ministro boiadeiro, mas acabou convencido pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto, que era mais seguro apostar na reeleição do prefeito. Era, até Marçal embaralhar o jogo. Para boa parte dos eleitores do capitão, o ex-coach é um bolsonarista raiz, que realmente defende as bandeiras do grupo, enquanto Nunes seria um oportunista, um aliado envergonhado do capitão. Precisa dos votos da turma, mas mantém a pose de moderado para escapar da elevada rejeição a Bolsonaro na cidade. Em pesquisa divulgada na quarta 28, a Quaest confirmou a ascensão de Marçal na corrida pela prefeitura. Ele figura com 19% das intenções de voto, o mesmo porcentual de Nunes. Apoiado por Lula, Guilherme Boulos, do PSOL, está numericamente à frente, com 22%. Tecnicamente empatados, os três são seguidos à distância por José Luiz Datena, do PSDB (12%), e por Tabata Amaral, do PSB (8%) .
O clã Bolsonaro sentiu o golpe e acionou a artilharia contra o antigo aliado. “Falta caráter ao Marçal. Ele me esculhambava até perto da eleição de 2022. Dizia que a diferença entre Lula e eu se resumia a um dedo e me chamou de ‘quadrilheiro’. Poucas semanas depois, quando não pôde ser candidato à Presidência, mudou de lado na reta final da campanha”, queixou-se o patriarca, em entrevista ao portal Metrópoles. O filho Zero Três, Eduardo Bolsonaro, aproveitou as denúncias de envolvimento de dirigentes do PRTB com líderes de uma facção criminosa para fustigar o ex-coach. “Muita gente reclama do PL, mas todo partido tem os seus problemas. E graças a Deus o do PL não é por envolvimento com droga ou PCC.”
Inicialmente, Marçal tentou contemporizar, depois passou a retaliar os ataques do núcleo familiar, inclusive com o compartilhamento de uma foto de Bolsonaro com uma mãozinha branca sobreposta ao nariz do ex-presidente, insinuando que ele seria um usuário de cocaína – mesma ilação leviana que fez contra Boulos em um debate, no qual chamou o psolista de “aspirador de pó” e ainda gesticulou pressionando uma de suas narinas.
A troca de farpas repercutiu negativamente entre os militantes da extrema-direita, que reconhecem Marçal como um denodado soldado da seita, e o clã Bolsonaro viu-se forçado a recuar. “Esse acovardamento mostra o tamanho do perigo. Diferentemente de outros desafetos do capitão, como Joice Hasselmann, Gustavo Bebianno e o general Santos Cruz, o coach não cresceu na aba de Bolsonaro. Todos esses outros que mencionei caíram no ostracismo, foram excomungados. Marçal tampouco é um competidor, como já foi no passado o então governador João Doria. Ele é visto como um possível substituto de Bolsonaro. É por isso que o ex-presidente e seus filhos ficaram tão ouriçados”, observa o cientista político Claudio Couto, professor da FGV de São Paulo. “Se Marçal triunfar, ele se cacifa para 2026.”
Para João Feres Jr., professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e coordenador do Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública (Lemep), Bolsonaro tem motivos para temer a perda de protagonismo político. “Existe uma certa competição na direita brasileira pelos eleitores do capitão. Ele se mostrou um excelente puxador de votos em 2018 e 2022. Provocou o chamado coattail effect – efeito rabo de casaco, na expressão em inglês –, arrastando muitos candidatos com ele. Ajudou a eleger grande número de parlamentares e governadores. Mas o Marçal é um intruso nessa competição. Veio de fora do sistema político para disputar esse espólio. Não foi ungido por Bolsonaro, mas está avançando sobre o seu rebanho.”
Segundo o mais recente relatório do Monitor do Debate Público, projeto do Lemep/Uerj que consulta a opinião de eleitores sobre os temas políticos mais relevantes da semana, Marçal conta com a simpatia da maior parte dos bolsonaristas. Entre os “convictos”, existe até alguma divisão. Alguns elogiam a postura combativa de Marçal, enquanto outros o veem como oportunista. Entre os “moderados”, o ex-coach é visto como uma promessa, um político inteligente e com uma autenticidade semelhante àquela de Bolsonaro no início de sua carreira. “Apesar de o ex-presidente não o apoiar, por ter outro candidato, Pablo tem grande chance realmente de se tornar prefeito e ou até mesmo presidente da República”, avaliou um dos entrevistados, um assistente logístico de 42 anos, morador de Pernambuco. Esse grupo dos “moderados”, esclarece Feres Jr., é composto por neoliberais, antipetistas e lavajatistas que votaram em Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2022, mas não apoiaram o 8 de Janeiro.
Marçal possui vários atributos que o destacam na disputa pelo espólio bolsonarista. Em primeiro lugar, é um outsider genuíno. O ex-coach realmente vem de fora da política tradicional, ao contrário de Bolsonaro, que se vendeu dessa forma em 2018, mas tinha 30 anos de atuação parlamentar. “O capitão nunca foi um outsider, mas um político marginal, sem relevância nas negociações legislativas”, observa Couto. “Além disso, Marçal tem um discurso motivacional que se aproxima da Teologia da Prosperidade, encampada por algumas igrejas neopentecostais. Essa retórica alimenta um sonho de ascensão social que tem forte apelo nas periferias, entre os trabalhadores uberizados que se sentem empreendedores”. Não por acaso, o candidato chega a 30% das intenções de voto entre os evangélicos, segundo a mais recente rodada do Datafolha, e é paparicado como celebridade em comunidades pobres, mesmo após a risível proposta de conectar favelas da cidade por teleféricos.
Para o sociólogo Thiago Torres, conhecido na internet como Chavoso da USP, a popularidade de Marçal entre os jovens da periferia é fruto do empobrecimento da população desde o impeachment de Dilma Rousseff e a aprovação das reformas de Michel Temer, que retiraram direitos dos trabalhadores. “De lá para cá, muitos perderam a carteira assinada, se viram obrigados a abrir um negócio ou caíram na informalidade. Muitos fazem bicos em dois, três lugares e ainda complementam a renda como motoristas ou entregadores de aplicativos . Chega alguém dizendo que tem a saída para essa realidade terrível, a ‘chave da prosperidade’, acaba convencendo, por mais que seja um discurso vazio”, diz Torres, morador de Brasilândia. “Vejo muitos jovens falando em aplicações financeiras, em investir na Bolsa. Acham que podem enriquecer com isso”.
Nativo do mundo digital, Marçal sabe como usar a terra sem lei das redes sociais em benefício próprio. Recentemente, a Justiça Eleitoral suspendeu perfis usados por sua campanha para monetizar a edição de vídeos favoráveis a ele. O esquema funcionava como uma espécie de gincana, com prêmios em dinheiro para quem produzisse vídeos com maior número de visualizações. A decisão judicial teve, porém, pouco efeito prático. Precavida, sua equipe criou contas reservas no Instagram, TikTok, Youtube, WhatsApp, Telegram e Gettr. Em tempo recorde, elas somavam mais de 2 milhões de seguidores. Bastou o candidato pedir aos seguidores para acessar os novos perfis.
A campanha de Boulos pretende tratar Nunes e Marçal como duas faces da mesma moeda
A ação para deter as artimanhas de Marçal nas redes foi movida por Tabata Amaral, até o momento a mais incisiva adversária a combatê-lo. Partiu dela, por exemplo, a inciativa de expor, em um didático vídeo, as suspeitas relações do ex-coach com gente ligada ao PCC. O candidato é amigo próximo do empresário Renato Cariani, acusado de fornecer produtos químicos usados na fabricação de drogas e dissimular as vendas por meio de notas fraudulentas. Já Leonardo Avalanche, presidente do PRTB e principal fiador da candidatura, foi flagrado, em uma conversa gravada secretamente, dizendo ter sido responsável em 2020 pela libertação do traficante André do Rap, um dos líderes da facção, por meio de supostas conexões com o Supremo Tribunal Federal. Em outro trecho, ele ainda insinua que seu motorista particular seria aliado de Francisco Antonio Cesário da Silva, o Piauí, ex-chefe do PCC na favela de Paraisópolis.
Por coincidência ou não, Marçal foi fotografado recentemente, nessa mesma comunidade, ao lado de Valquito Soares da Silva, irmão de Piauí. “Quem está por trás do Marçal? Quem é que banca essa candidatura? Uma pesquisa por seus aliados esbarra sempre nas mesmas letras: P de Pablo, C de Coach, C de Criminoso”, diz Tabata no vídeo. Na defensiva, o candidato admitiu ser “constrangedora” a presença de Avalanche na direção do PRTB, mas lavou as mãos: “Gostaria que ele se afastasse. Falei isso para ele. Ele disse que vai provar a inocência. O que posso fazer?”
Informalmente, integrantes da campanha de Boulos avaliam que Marçal é, ao menos por ora, um problema de Nunes. A ordem é manter uma campanha propositiva e tratar ambos os oponentes como duas faces da mesma moeda. “Um incompetente, apoiado pelo próprio Bolsonaro, e outro bandido, apoiado por boa parte do bolsonarismo”, resume um interlocutor. Em comício no sábado 24, Lula criticou o discurso dos outsiders que emergem a cada nova eleição desde o tsunami provocado pela Operação Lava Jato: “Eu estou vendo a campanha em São Paulo e tem pessoas dizendo: ‘aquele político não presta, é ladrão’, ‘vote em mim porque eu não sou da política e, por isso, sou honesto’. Ora, Jânio Quadros dizia isso e só durou seis meses na Presidência. O Collor de Melo dizia isso e só durou dois anos. O que nós precisamos, de fato, é o seguinte: votar no Boulos porque ele é da política, tem partido e, quem tem partido, tem compromisso”.
Eleitoralmente, a escolha de Boulos parece acertada, avalia Feres Jr. Em primeiro lugar, pelo fato de o ex-coach disputar votos pela direita e só poder roubar votos do prefeito e, em menor escala, de Datena. Em segundo, porque Nunes está no comando da máquina pública. Por fim, Marçal é mais fácil de ser batido no segundo turno, exatamente por ser radical. “Nunes buscou se apresentar ao eleitorado como um bolsonarista moderado por saber que a elevada rejeição a Bolsonaro será um obstáculo. Tenta colar em Boulos a pecha de radical, de invasor de propriedade, exatamente para conquistar o voto de eleitores mais ao centro do espectro político. Perto de Marçal, é impossível considerar Boulos mais radical”, emenda Couto.
Em conversas reservadas, integrantes da campanha de Nunes admitem ser difícil resgatar votos de bolsonaristas que migraram para Marçal, mesmo após Bolsonaro aparecer nas inserções de tevê pedindo votos ao prefeito. Enquanto espera a Justiça Eleitoral se manifestar em uma ação que pode anular o registro da candidatura do ex-coach, por irregularidades no processo de escolha do candidato, a campanha do emedebista pretende continuar apresentando Nunes como uma opção de voto na “direita não radical” e focar nas realizações de seu governo. “Ricardo é o candidato da realidade, e não do mundo virtual. É também o único capaz de derrotar todos seus adversários no segundo turno. Quando isso ficar mais claro, ele tende a subir mais nas pesquisas”, avalia o deputado Baleia Rossi, presidente do MDB.
Embora Bolsonaro terceirize a Nunes a missão de cortar as asas de Marçal, o ex-presidente tem mais a perder caso seu candidato seja precocemente derrotado. “Marçal conseguirá um enorme feito se passar ao segundo turno sem tempo de tevê, sem estrutura partidária e sem padrinho”, diz Couto. O capitão que se cuide. •
Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.