No início do ano, a Netflix, em parceria com o governo francês, criou o Voyage en France, um mapa interativo que funciona como um guia turístico voltado a fãs de filmes e séries. O site oferece, por exemplo, um roteiro com locações de Emily em Paris. O guia Lonely Planet, por sua vez, tem uma versão dedicada apenas a produções audiovisuais.

Embora o turismo cinematográfico seja embalado para consumo desde a década de 1990, os novos modelos de produção e distribuição do streaming fizeram com que a relação entre audiovisual e turismo adquirisse uma dimensão inédita e passasse a mobilizar os governos.

No Brasil, os efeitos do fenômeno são inexpressivos em termos de produções realizadas, mas respingam na administração pública, que passou a criar as chamadas Film Comissions. A expressão, usada em inglês, designa estruturas vocacionadas para facilitar filmagens e atrair produções para determinados destinos.

Foi essa onda que motivou a realização do Noronha2B – Film Commission ­Forum, que aconteceu entre 19 e 23 de agosto, em Fernando de Noronha (PE) e reuniu representantes de 21 Film Comissions brasileiras. O evento, aberto com um show de Lia de Itamaracá, também serviu de palco para que Embratur e Ministério da Cultura (MinC) explicitassem o plano de criação de uma Film Comission nacional.

A exploração do chamado turismo cinematográfico ganhou impulso com o streaming

“Das dez maiores economias do mundo, o Brasil é a única que não tem uma Film Comission”, diz, a CartaCapital, Marcelo Freixo, presidente da Embratur. “A esquerda sempre olhou muito mais para a cultura que para o turismo, por ver o turismo como algo ligado ao lazer. Mas o turismo é uma alternativa econômica para o século XXI, e o audiovisual é fundamental para o desenvolvimento do turismo.”

A presença de Freixo e de Márcio Tavares, secretário-executivo do MinC, emprestou ao encontro uma institucionalidade que parece indicar o início de uma ação coordenada em torno desse tema.

O cineasta e produtor gaúcho Zeca Brito, idealizador do evento, diz que, ao reunir esse grupo, seu objetivo era “legitimar as comissões fílmicas” e, ao mesmo tempo, dar materialidade às ações de cada uma delas. Mas não só: “Também queríamos colocar os dois setores, audiovisual e turismo, em contato e provocar o Poder Público, mostrando que a cultura pode ter um protagonismo no turismo”.

Como diz Paulo Senise, ex-presidente da Embratur e um dos curadores do Noronha2B, “o turismo depende de imagens e o audiovisual faz isso”. Dois exemplos comumente citados são o aumento de 38% no turismo na Nova Zelândia entre 2000 e 2006, a partir de O Senhor dos Anéis, e de 38% na Croácia, mais recentemente, por conta de Game of Thrones.

Para entender esse movimento, em geral abordado apenas pela ótica positiva, é importante levar em conta a própria lógica da indústria do entretenimento. No livro Global Hollywood, de 2013, Toby Miller, ao tratar da hegemonia do cinema norte-americano, já delineava as feições da nova fase da internacionalização de Hollywood.

De acordo com Miller, três dos cinco candidatos ao Oscar de Melhor Filme em 2000 foram rodados fora dos EUA. Nesse ano, os estúdios gastaram, por meio de incentivos fiscais, 10 bilhões de dólares.

Andressa Pappas, diretora de relações governamentais da Motion Picture Association (MPA), que tem, entre os associados, Disney e Netflix, mostrou, na apresentação realizada no arquipélago, um mapa que indica as localidades com “políticas de atração de investimento”.

Mapa-múndi. As sequências iniciais de A Sociedade da Neve foram rodadas no Uruguai e Damsel foi filmado em Portugal. Para Zeca Brito (abaixo), a cultura é um motor para o desenvolvimento do turismo – Imagem: Netflix e Redes Sociais/N2B

“Com o advento do streaming, a demanda por produção aumentou muito”, pontua ela. “Nesse contexto, vários Estados e governos começam a se perguntar como se colocar de maneira mais competitiva no mercado. Esses programas se proliferaram pelo mundo, e todos têm uma Film Comission atrelada a eles.” A MPA possui acordos com mais de cem localidades.

No Brasil, um estudo conduzido pelo grupo de pesquisa coordenado por Nathália Körössy, na Universidade Federal de Pernambuco, registrou 21 Film Commissions, quase todas municipais e criadas por decreto, a partir de 2019. As de São Paulo e Rio de Janeiro oferecem, desde 2022, incentivos financeiros por meio do cash rebate, um reembolso de despesas “elegíveis” realizadas nas cidades.

Outro sistema adotado internacionalmente é o tax credit, ou crédito fiscal. Segundo Freixo, a Secretaria do Audiovisual estuda os modelos possíveis para a futura comissão fílmica federal.

“Também é possível direcionar os investimentos para regiões específicas”, diz Freixo. “Devemos lembrar que 20% da biodiversidade do mundo está no Brasil.” Foi, nesse sentido, simbólico que o fórum acontecesse em Fernando Noronha. O arquipélago, afinal de contas, tem uma das maiores diversidades marinhas do mundo, mas não só.

A França, em 1914, instalou na ilha o Cabo Francês para Telegrafia e, em 1927, a Companhia General Aeropostale, precursora da Air France. De 1957 a 1965, os EUA mantiveram aqui o Posto de Observação de Mísseis Teleguiados. Essas marcas se deixam ver em pontos que carregam, da história, o nome: Praia do Americano, Morro do Francês e Air France.

“Que tipo de turismo quero que chegue aqui? O turismo que gere emprego, renda, e formação. Mas também que contribua para a preservação da identidade local e do meio ambiente”, reforçou Freixo.

Enquanto as estruturas municipais lidam com as questões ligadas às cidades, a federal, além de incentivar novos protagonismos no turismo, deve cuidar de aspectos como alfândega, vistos e importação de material. Outra diferença é que a Film Comission federal teria a captação de turistas como foco permanente.

“Apesar de as comissões nascerem ligadas ao turismo, como as estruturas são enxutas, não há fôlego para se trabalhar essa dimensão. Elas, basicamente, respondem às demandas”, diz Nathália. “No Brasil, o grande caso de turismo gerado pelo audiovisual talvez seja o das favelas.”

A fragilidade do modelo fica clara em um exemplo dado por Cristiano Braga, supervisor de Cultura da Embratur: Cabaceiras, no Cariri paraibano. A cidade recebeu mais de 50 produções e oferece um roteiro pelos caminhos percorridos por João Grilo e Chicó, em O Auto da Compadecida. Mas não tem uma Film Comission.

O papel de uma Film Comission, diz Braga, é potencializar um destino como locação e explorar os “benefícios de uma certa complementariedade”: “A presença de produções pode gerar novas qualificações e mesmo um catálogo de serviços. Por isso uma Film Comission deve ser entendida no âmbito das políticas públicas”.

Em São Paulo, a oficialização da Film Comission pela SPCine, em 2015, foi assim posicionada. “No caso de uma política pública, a ideia é mobilizar ferramentas para atrair produções e trabalhar para tornar a administração pública mais amigável para filmagens”, explica Daniel Celli, que trabalhou na São Paulo Film Comission e hoje está à frente da Film Comission do Rio.

“Antes, muitas produções, em São Paulo, eram filmadas da janela para fora. Hoje, os espaços públicos paulistanos são muito mais filmados”, conta Celli. “O Rio é filmado há mais de cem anos, mas a cidade demorou para ter isso como pauta estratégica. Em 2023, passou Paris em número de diárias autorizadas.” Essa conta inclui todo e qualquer tipo de filmagem – e não apenas filmes e séries. O cash rebate, segundo Celli, tem sido acessado, sobretudo, pelas plataformas de streaming.

São também as plataformas que respondem pelo boom de filmagens em dois países presentes no Fórum: Portugal e Uruguai. Ana Marques, diretora-executiva da Portugal Film Comission, conta que o Fundo de Apoio ao Turismo e ao Cinema foi criado em 2018, pela secretaria do Turismo, com o intuito de atrair filmagens e grandes eventos. No ano seguinte, nascia, em fase de teste, a Film Comission.

Cada vez mais, Hollywood roda produções em países que ofertam incentivos fiscais

Os bons resultados fizeram com que a estrutura se tornasse permanente e ficasse abrigada no Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). A Netflix, por exemplo, rodou em Lisboa a série Heart of Stone e, em diferentes partes do país, o filme Damsel. “Aplicamos um teste cultural, baseado em pontos, para entender se a produção interessa ao país e ao turismo”, diz Ana. Recentemente, o sistema foi readequado para evitar que apenas as grandes produtoras conseguissem acessar os recursos.

Ignacio Curbelo, diretor-geral do Ministério do Turismo do Uruguai gosta de, antes de celebrar os resultados da Film Comission, esmiuçar o contexto do país. Ele diz que o Uruguai é considerado a mais sólida democracia da América Latina; é o país da região com maior uso de energia limpa e com a mais veloz conexão à internet; e possui um imposto nacional único.

“Temos, além disso, grande infraestrutura técnica. E as distâncias curtas e o trânsito ágil permitem que, em pouco mais de uma hora, se saia de uma paisagem urbana para o mar ou o campo. Montevidéu já foi de Havana Velha a Berlim”, conta. As sequências iniciais de A Sociedade da Neve foram lá filmadas, assim como partes de Senna, a série da Netflix produzida pela brasileira Gullane. Em todos esses casos, as produtoras locais trabalham como prestadoras de serviços.

Márcio Tavares, do MinC, que participou de uma mesa no Noronha2B, sobre a regulação do streaming no Brasil – tema que, de forma indireta, se cruza com o das Film Comissions – garantiu que, até o fim da atual gestão, essa outra pauta avançará.

“Entregar uma Film Comission é uma das nossas metas como gestão”, diz Tavares. “Esse debate permeia o governo e o Congresso. Estamos agora discutindo um substitutivo para o Projeto de Lei (já existente) para chegarmos ao formato que achamos que uma Film Comission deve ter.” •


*A jornalista viajou a convite da organização do Noronha2B.

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Última Atualização: 29/08/2024