Conexões, dutos e a linguagem da “transição energética”
por Luís Carlos
Na década de 1990, eu trabalhava como repórter da revista Brasil Energia, uma publicação especializada em negócios nos mercados de petróleo, gás natural e energia elétrica. Eu reportava o andamento de projetos bilionários na área de construção de grandes linhas de transmissão, barragens – e, especialmente, de mega usinas hidrelétricas.
Naquela época, expandiam-se rapidamente as linhas de transmissão de energia. Elas conduziam por milhares de quilômetros a eletricidade produzida por mega tragédias sociais e ambientais. Foram erguidas a toque de caixa no meio da região amazônica – que produz quase 30% da energia elétrica brasileira.
Tucuruí e Balbina, localizadas no Pará, há um bom tempo já entregavam energia subsidiada às maiores fortunas corporativas do País. Belo Monte (também no Pará), Jirau e Santo Antônio (em Rondônia), todos filhotes da concepção de Brasil Grande e gestadas durante a ditadura, estavam prestes a sair das pranchetas. Elas foram viabilizadas pelos financiamentos generosos do BNDES, o banco público que deveria sustentar o desenvolvimento do Brasil, mas que na democracia ajuda a concentrar a renda nacional.
De todas essas usinas saíam os “conexões”, ou seja, linhas de transmissão construídas para levar montanhas de energia barata para grupos empresariais sediados em polos industrializados do País.
Apesar de a energia gerada ser fortemente subsidiada para os ricos grupos empresariais, milhares de pessoas pobres que viviam em terrenos localizados ao longo dessas linhas e embaixo delas não eram atendidos pela eletricidade produzida pelo seu próprio País. Esses pobres já estavam às vésperas do século 21, mas ainda utilizavam velas para iluminar os seus lares. Na prática, não haviam saído da Idade das Trevas.
Os planejadores do sistema elétrico brasileiro naquela época não se importam com essa incoerência histórica. Quando questionados, entoavam a ladainha: “grandes blocos de energia devem servir a grandes consumidores de eletricidade”. Desprezavam, por indigência intelectual ou fidelidade contratual, o fato objetivo de que a Região Amazônica – de incrível diversidade social, cultural e biológica – tem a capacidade de produzir pequenas quantidades de energia localmente e pode servir aos pobres que vivem(iam) a poucos quilômetros desses enormes monstros elétricos.
Aqueles planejadores fingiam desconsiderar o que as pesquisas afirmavam: fontes como a biomassa, o Sol, os ventos e o biodiesel são uma alternativa técnica e econômica. Por exemplo, prescindiriam do óleo diesel, o combustível fóssil das usinas termelétricas que ainda ainda fornecem eletricidade cara e emitem gases causadores da crise climática.
Apesar desses exemplos históricos, nesta segunda (26 de agosto) foi lançada a Política Nacional de Transição Energética (PNTE). Ela mostra que o Brasil, em pleno século 21, continua a privilegiar os grandes e esquecer dos pequenos.
A PNTE induz a produção do fóssil gás natural; utiliza a linguagem da “transição energética” para se viabilizar politicamente; não privilegia fontes menos poluidoras; confirma a estratégia de voláteis grupos econômicos que sempre estão perto do poder; e colocam em prática a estratégia de gasosa contrabandeada na legislação que em 2021 permitiu o escândalo que foi privatização da Eletrobrás.
Embora nas últimas décadas tenha sido muito reduzido o número de famílias pobres que vivem sem energia elétrica no Brasil, essa PNTE indica que os pequenos ainda não alcançaram o grau de prioridade nacional. E que terão de mudar de vizinhos: em vez de conexões, dutos.
Luís Carlos – Jornalista; doutorando em História Contemporânea (UFF).
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