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O Altar Sagrado do Samba
por Daniel Costa
Acredito que, assim como o autor das próximas linhas, muitos de vocês já se pegaram pensando qual o significado do samba em nossas vidas. Para algumas pessoas, o samba é lugar de resistência, para outros de luta. Ainda há quem enxergue uma boa roda como lugar de comunhão, de troca de afetos e saberes. Nessa lista de percepções, ainda posso lembrar a ideia de comunhão, pertencimento e elo entre o sagrado e o profano. São tantas as sensações que o samba desperta em nós, que, parafraseando o mestre Paulinho da Viola, se fosse listar todas elas, hoje não terminaria.
Buscando as origens do termo, o compositor e pesquisador Nei Lopes explica que: “A palavra samba está presente no cotidiano brasileiro desde, pelo menos, o século XIX, quando era definida simplesmente como “um tipo de dança de negros”, ou seja, tem inegável origem africana”. O compositor afirma ainda que, enquanto, “arte eminentemente popular, (o samba) aos poucos foi sendo estudado e compreendido. Na década de 1940, já era visto como uma “dança de salão, aos pares, com acompanhamento de canto, em compasso 2/4 e ritmo sincopado”, como definiu o poeta e folclorista Mário de Andrade.
Tomando como ponto de partida o que fora dito por Nei Lopes, chegamos ao historiador e também compositor Luiz Antonio Simas, que prefere trazer seu olhar sobre o samba, mirando no carnaval e nas escolas de samba. Vejamos: “Olha, primeiro é uma coisa que a gente tem que lembrar. As escolas de samba surgem no Rio de Janeiro, uma cidade preta, o maior porto de recepção de pessoas escravizadas que a gente tem na história do escravismo. E elas surgem como construtoras de sociabilidades, de redes de proteção social, das populações negras do Rio de Janeiro no pós-abolição. O Rio de Janeiro é uma cidade negra. Ponto, isso é de uma evidência absoluta. E a cultura do Rio de Janeiro é marcada por essa evidência: a comida, as sonoridades, as espiritualidades, a maneira de praticar a rua. As escolas de samba surgem nessa circunstância e sua história é marcada por vários dilemas, evidentemente”.
Por fim, recorremos ao compositor paulistano Osvaldinho da Cuíca, um dos baluartes do samba paulistano, apresentando sua visão acerca do ritmo. Tomando como ponto de partida o samba paulista, Osvaldinho esclarece que: “Antes da consagração nacional do samba carioca nos anos 30, o termo “samba” em São Paulo (como no resto do Brasil) não designava um gênero musical específico, mas apenas uma forma de lazer popular em que se tocava música. Por esse motivo, era comum entre os caipiras — São Paulo tinha uma população majoritariamente interiorana — chamar de “samba” uma parte de suas cantorias festivas”.
A essa altura, o leitor deve estar com a seguinte questão na cabeça: por que esse acúmulo de informações para tratar de um disco recém-lançado? Para essa questão, o escriba responsável por essas palavras esclarece que não há como escutar “Pejí – O Altar Sagrado do Samba” sem considerar a trajetória do samba nos últimos cem anos, e como esse ritmo se tornou fundamental na vida de milhares de brasileiros.
Através de “Pejí – O Altar Sagrado do Samba”, álbum que chegou às plataformas digitais no final de julho, a cantora Roberta Oliveira apresenta ao público não apenas sua trajetória no universo do samba, mas também a sua intrínseca relação com o ritmo. Uma relação sincera, verdadeira como poucas intérpretes conseguem transmitir ao público. Ouvir as canções interpretadas por Roberta Oliveira é presenciar mais que uma cantora exercendo seu ofício, é presenciar uma verdadeira entrega carnal e espiritual à nossa ancestralidade através do canto.
Para compreender a plenitude de um álbum da magnitude de “Pejí – O Altar Sagrado do Samba”, é fundamental conhecer ao menos parte da trajetória dessa mulher chamada Roberta Oliveira. Nascida em Campinas, a cantora e compositora tem um longo histórico de lutas sociais em prol da educação e da juventude. Mesmo nos momentos mais difíceis da nossa conjuntura política, lá estava Roberta Oliveira usando o seu canto e seu poder de articulação como ferramenta política e de denúncia.
Até a pessoa mais ingênua sabe que em momentos de estabilidade política — por mais que tenhamos milicianos, golpistas e achacadores a espreita esperando o momento certo para dar o bote — é fácil e cômodo fazer o discurso de artista indignado com a nossa sociedade injusta, usando um boné do MST e fazendo fotos “instagramáveis”. Afinal, na sociedade onde impera o capital, o ativismo também gera likes, engajamento e lucro.
Porém, poucos artistas apresentam a coragem de Roberta, evidenciando em seu canto e em seu repertório temas como racismo, religiosidade afro-brasileira, desigualdade social e violência contra mulher. Mesmo nos momentos mais difíceis, a cantora colocou sua voz à disposição de causas como a das Mães de Maio e do Cordão da Mentira. Se posicionar de forma enfática a curto prazo pode fechar algumas portas, porém a longo prazo não só atesta a coerência como reforça o comprometimento e caráter do artista.
Em sua trajetória, participou ainda de diversos coletivos e projetos ligados ao samba, entre eles o Kolombolo Diá Piratininga, espaço onde começou a construir sua identidade enquanto intérprete. Desde 2013, comanda a roda de samba Samburbano, que acontece no último sábado do mês, de forma gratuita e aberta ao público no Largo da Santa Cecília, fazendo daquele espaço uma verdadeira trincheira do samba.
Ao ouvir as doze faixas de “Pejí – O Altar Sagrado do Samba”, o ouvinte entrará em contato, de maneira direta e indireta, com o profano e com o sagrado, ou seja, com a essência do samba. Em um cenário onde a intolerância religiosa ganha cada vez mais espaço, o canto de Roberta mais uma vez brota como um canto de resistência, homenageando por meio de um verdadeiro ajeum sonoro os orixás e entidades que permeiam a religiosidade afro-brasileira.
Ligada umbilicalmente ao samba paulista, Roberta não deixa de ressaltar ao longo do disco as particularidades do samba feito em nosso estado. Porém, tal decisão, não a transforma em uma intérprete bairrista, pelo contrário, mostra apenas sua coragem e pluralidade ao navegar com desenvoltura por um repertório que abraça desde os paulistanos Douglas Germano e Aloysio Letra, passando pelo carioca Adilson Bispo até desembarcar na Bahia de Guiga de Ogum.
Além do qualificado repertório, outro destaque do álbum são os arranjos preciosos e precisos de Matheus Nascimento, Felipe Siles e João Nascimento, nomes conhecidos no mundo do samba e nas noites paulistanas, e o time musical que acompanha Roberta.
O álbum é aberto pela faixa “Pra Proteger Você”, composição de Pablo Souza, Paulinho Cuíca, o eterno Hélio Rubi e Charles Dief, onde, além de pedir licença às sete linhas para iniciar os trabalhos, pede que a justiça nunca falhe, para o mal não se criar. Em seguida, é chegada a hora de cantar para Exu, aquele que além de ser o protetor do povo da rua, é o orixá mensageiro. Aquele que estabelece a ligação entre o nosso mundo e o mundo dos orixás, através de “Mensageiro”. Canção composta por Sil Oléa, grande cantora e compositora da zona leste paulistana.
A nova geração do samba paulistano é representada pelas composições “O Trem da Nossa História”, parceria de Maty Moya, Zé Vieira e Lello Di Sarno, e “Dose Certa”, canção de Anderson Soares e Daniel Arruda. Prosseguindo com seu canto para o sagrado as raízes interioranas de Roberta podem ser percebidas na calma “Reza Ribeira” do compositor Chico Saraiva; “Pedido à Rainha” de Giovani Felizate e Osni Gonçalves e “Corpo Lavado”, do trio formado por: Claudia Rocha, Aninha Batucada e André Congo que de forma bela e singela homenageiam Omolu, o orixá que acolhe e cura.
Em seguida, é a vez de “Vem Sim / O Sol”, o primeiro composto pela dupla formada pelos veteranos Roberto Capri e Adilson Bispo, a segunda vem da caneta do compositor e ativista Aloysio Letra. Já em “Vivo a Guerrear”, do também campineiro Edu Batata, Roberta canta a força de tantas guerreiras que vivem a lutar, seja por aqui ou em outros planos.
Chegando ao fim do álbum, encontramos a autoral “Família”, parceria da própria Roberta com Rodolfo Stocco, uma canção que exalta a ancestralidade e o canto que vem na força dos ventos e do mar, captada e ecoada por vozes como a de Roberta. Como penúltima faixa, surge “Peji”, canção de Douglas Germano que batiza o disco; encerrando os trabalhos, temos “Oxumaré” do baiano Guiga de Ogum.
Com o lançamento de “Pejí – O Altar Sagrado do Samba”, Roberta Oliveira alcança a sua maturidade artística, selando seu compromisso com o samba em todas as suas vertentes, deixando para o público um álbum que seguramente será citado em qualquer antologia do samba paulista a ser realizada no futuro. Ouvir cada faixa desse disco faz o ouvinte entrar em comunhão e louvar o samba e nossos mestres.
Encerro esse texto com um pequeno recado para Roberta: nós moradores dessa cidade cinza e carrancuda ficaremos eternamente gratos por esse lançamento que traz a força de quem está lutando diariamente, remando contra a maré e contra aqueles que pensam deter o poder; mas também traz cor e afeto para uma cidade que insiste em se mostrar hostil ao povo e ao que é popular.
E do mesmo modo que nós aqui ficamos felizes, no Orum nossos mestres Toinho Melodia, Seu Dadinho e o nosso querido Antônio Carlos, o eterno Tonhão, brindam e comemoram a força, a beleza e a consolidação da trajetória da menina Roberta, que mais do que nunca é Roberta Oliveira.
Daniel Costa é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C. Kolombolo Diá Piratininga.
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