Agosto é um mês sagrado para os terreiros e devotos de Omolu em todo o Brasil. Este período marca as celebrações em honra à divindade que rege a terra, a saúde e o delicado equilíbrio entre a vida e a morte. Mas a história de Omolú, também conhecido como Obaluwaiye, vai além das fronteiras da tradição nagô. Ela se entrelaça com a poderosa divindade Azonsu Sakpata, cultuada na região de Savalu, no antigo Daomé. Este sincretismo reflete a riqueza cultural e espiritual das religiões afro-brasileiras, e a profundidade das conexões entre diferentes tradições africanas.

Azonsu Sakpata e Omolu: O Sincretismo das Divindades

Azonsu Sakpata, no culto vodun, é uma divindade associada à terra e às doenças, especialmente as doenças de pele e epidemias. No Brasil, ele é sincretizado com Omolu, o orixá que desempenha funções semelhantes na religião dos orixás. Ambos são venerados e temidos, invocados para afastar doenças, proteger contra a morte prematura e apaziguar a ira da terra. Durante as celebrações de Omolu em agosto, os devotos clamam por misericórdia, pedindo perdão por suas falhas e suplicando pela chance de caminhar na terra com saúde e segurança.

O termo “Vodun” é usado para designar tanto a religião quanto as divindades cultuadas nessa tradição, originária da antiga ‘Costa dos Escravos’. Vodun é um termo ligado ao idioma Gbè, comum em regiões que se estendem da Nigéria até a Costa do Marfim, incluindo o Benin, Gana e o Togo. Essa palavra encapsula a rica cosmovisão dos povos que veem no Vodun uma força vital interdependente dos seres humanos. Conforme destaca Maupoil em “La Géomancie à L’Ancienne Côte des Esclaves”, o poder dos Voduns está intrinsecamente ligado às oferendas e preces dos humanos, que fortalecem essas divindades em troca de proteção e bênçãos.

No Brasil, o culto ao Vodun Sakpatá, adaptado no Candomblé Jeje, mantém muitos dos elementos originais, embora entrelaçados com práticas do Candomblé Ketu. No Candomblé, Omolu e Sakpatá são reverenciados com grande respeito, e rituais como o Andê (no Jeje) e o Olubajé (no Ketu) são realizados para apaziguar essas divindades e garantir a saúde e o bem-estar dos devotos.

A Perspectiva de Susan Middleton: Uma Conexão Transnacional

Um exemplo marcante da conexão entre o culto vodun e a transnacionalidade da religião dos orixás é a história da fotógrafa Susan Middleton. Renomada por seus trabalhos na National Geographic, Susan tem vivido entre as comunidades Vodun no Benin desde a década de 1990, documentando aspectos profundos e raramente vistos desse culto. Em 2019, Susan foi iniciada no Vodun Sakpatá, uma experiência que ela descreve como uma das mais emocionantes de sua vida. “O Vodun não está no céu, está dentro da terra, emergindo para nos conectar a todos os seres”, compartilha Susan, revelando o profundo amparo espiritual que sentiu durante sua iniciação.

Susan Middleton foi convidada a participar de atividades secretas em conventos de Vodun em Ouidah e nas celebrações no Palácio de Abomey, um privilégio inédito para uma estrangeira. Seu trabalho fotográfico captura a força dos Voduns em transe, momentos de intensa espiritualidade que nunca antes haviam sido registrados dessa maneira. Inspirada pelo trabalho do renomado Pierre Verger, Susan seguiu seus passos, inclusive utilizando o mesmo quarto de revelação que Verger usava para desenvolver suas fotografias.

A experiência de Susan ilustra a transnacionalidade da religião dos orixás, um conceito estudado por acadêmicos como Clara Saraiva, da Universidade de Lisboa, e Stefania Capone, Diretora de Pesquisa do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), em Paris, especialista em transnacionalização dos Orixás, tema esse que venho me dedicando no meu projeto atual de doutorado em estudos africanos. A iniciação de Susan no Vodun Sakpata demonstra como essas tradições africanas continuam vivas, se expandindo e influenciando pessoas em todo o mundo, atravessando fronteiras culturais e geográficas.

Sakpatá no Brasil: Clamando por Saúde e Vida

No Brasil, as celebrações de Omolu, Obaluwaiye e Azonsu Sakpata em agosto são momentos de profunda conexão com a terra e as forças que ela representa. Honrar essas divindades ligadas ao elemento terra é reconhecer a importância de cuidar do planeta e de nós mesmos, buscando equilíbrio e saúde em um mundo em constante mudança. Celebrar Sakpatá também é uma maneira de honrar o que os negros escravizados do atlântico sul confiaram como ferramentas e tecnologias para o tratamento de doenças e enfermidades que na época eram ignoradas pelo Estado. Sakpatá era tudo que existia para o tratamento de doenças antes do SUS e dos médicos de família para esses povos. Os rituais dedicados a essas divindades são portanto uma súplica pela cura, pelo afastamento das doenças e pela proteção contra a morte prematura, e uma celebração as sofisticadas tecnologias trazidas pelos povos africanos ao Brasil durante a escravidão.

À medida que celebramos Omolu e Azonsu Sakpata, somos chamados a refletir sobre nossa relação com a terra, com nossas raízes espirituais e com o poder transformador das divindades que nos conectam ao cosmos. Em um mundo cada vez mais instável, esses rituais nos lembram que a terra é nossa mãe, que dela viemos e a ela retornaremos, e que ao reverenciar essas divindades, pedimos que nos concedam a graça de uma vida longa, saudável e harmoniosa.

Babalawo Vitor Friary. Doutorando em Estudos Africanos e Sacerdote de Culto a Ifá, Voduns e Orixás no Brasil.

 

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Última Atualização: 27/08/2024