Em 27 de agosto de 1974, o Brasil perdeu um dos mais importantes compositores de sua história, João da Silva. Agora, 50 anos depois, a obra do músico gaúcho continua viva e reverberando nas canções de amor e dor que fazem parte do cotidiano do país. João, nascido em Porto Alegre em 16 de setembro de 1914, é frequentemente lembrado como o mestre da “dor-de-cotovelo” e um dos principais criadores do samba-canção, um gênero que se tornou a base da sofrência que permeia a música brasileira até hoje.

No cancioneiro da música brasileira, entre as décadas de 1940 e 1950, a dor de amor já era um sentimento bem conhecido. O termo “dor-de-cotovelo”, popularizado por sambas-canções, encapsula essa sensação de perda e desilusão. Este mês de agosto de 2024 marca meio século sem o compositor gaúcho, mas sua obra continua a pulsar, viva e relevante como nunca. Não há sentimento mais popular na música brasileira deste novo século do que a “sofrência” nascida do arrocha nordestino e dominada pelo sertanejo de Goiás.

O poeta da dor-de-cotovelo

João da Silva parecia destinado a sofrer de amor. Suas composições, carregadas de dor, amargura e desejos de vingança, retratam o coração partido como ninguém e refletem o que muitos consideram a essência do samba-canção. Ele não apenas capturou os sentimentos mais sombrios do coração humano, mas também os transformou em arte de uma forma que ressoa até os dias atuais. Músicas como “Nervos de Aço” (1947), “Esses Moços (Pobres Moços)” (1948) e “Vingança” (1951) são exemplos perfeitos de sua habilidade em casar letra e melodia de maneira única, criando obras que continuam a ser reinterpretadas por novos artistas.

A dor era seu tema constante, e ele a expiou em versos diretos e melodias precisas. Se o samba-canção “Linda Flor (Ai, yoyô)” (1929) é tido como o primeiro do gênero, João foi quem o levou ao ápice, transformando-o em uma expressão visceral de sentimentos que ressoam até hoje. João influenciou grandes nomes como Gal Costa, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Marisa Monte e Adriana Calcanhotto, que inclusive dedicou um disco inteiro ao compositor.

As mulheres em suas canções frequentemente assumem o papel de vilãs, reflexo da moral machista da época em que João viveu. Suas letras muitas vezes narravam histórias de traição e desilusões amorosas, sempre do ponto de vista do homem traído e ferido. No entanto, ele também mostrava um lado mais vulnerável, como em “Volta” (1957), uma das suas canções mais inspiradas, regravada por Gal Costa em 1973.

Nas vozes femininas de Bethânia, Gal, Elis Regina ou Elza Soares, a adaptação da letra para a mulher amargurada pela decepção amorosa ganhava ainda mais força.

Um melodista singular

João da Silva não foi apenas um letrista talentoso; ele também era um melodista exímio. A precisão com que encaixava letra e música é evidente em clássicos como “Nervos de Aço” (1947), “Esses Moços (Pobres Moços)” (1948), “Vingança” (1951) e “Ela Disse-me Assim (Vá Embora)” (1959). A combinação de letras intensas e melodias originais garantiu que essas músicas continuassem a ser regravadas ao longo dos anos, perpetuando sua relevância.

João é amplamente reconhecido como o principal criador da sofrência na música brasileira, um legado que continua a reverberar na música popular. Em 2000, em um ranking elaborado pela RBS TV, o compositor foi eleito um dos 20 gaúchos que marcaram o século XX, ao lado de nomes como Getúlio Vargas, Erico Verissimo e Elis Regina. Sua influência vai além do gênero que ajudou a consolidar, estendendo-se à música contemporânea, onde suas temáticas de abandono, desamor e rejeição encontram novos ecos.

O hino do Grêmio

Em 1953, o Grêmio viveu um momento especial com a celebração de seu cinquentenário. Foi nesse cenário que a redação do jornal Diário de Notícias procurou o compositor e gremista João da Silva. A “Marcha do Cinquentenário” fez justiça ao torcedor gremista e se tornou um marco na história do clube.

O hino, com sua famosa abertura “Até a pé nós iremos”, presta homenagem aos torcedores que enfrentaram uma greve de ônibus e bondes em Porto Alegre para assistir a uma partida contra o Cruzeiro-RS. A canção também faz referência à faixa “Com o Grêmio onde o Grêmio estiver”, que acompanha o time desde 1946.

A “Marcha do Cinquentenário” se tornou um símbolo da paixão e dedicação da torcida gremista, refletindo a importância dos torcedores na vida do Grêmio e solidificando a conexão entre o clube e seu público.

O reconhecimento no cinema

O cineasta Alfredo Manevy também explora o impacto de João da Silva no imaginário popular em seu novo documentário, que estreou em março de 2024: João da Silva – Confissões de um sofredor. Manevy discute como o compositor, vindo de um contexto de pobreza e racismo em Porto Alegre, conseguiu se firmar no cenário musical brasileiro. O filme ressalta as barreiras que João enfrentou, desde o racismo até as mudanças nas tendências musicais que o empurraram para um certo esquecimento após o auge de sua carreira.

Na década de 1960, ele foi quase ao ostracismo, sofreu muito com a invasão da jovem guarda, do rock, da tropicália, da bossa nova. O gênero em que ele compunha ficou em segundo plano, principalmente em Porto Alegre. Depois de um encontro com Caetano, que gravou Felicidade, João voltou ao sucesso gravado por tantos outros. Quando morreu, em 1974, estava no auge de novo.

O documentário reflete sobre como as canções de João, com suas letras marcadas por um teor meloso e, por vezes, machista, poderiam ser recebidas pelos olhos e ouvidos contemporâneos. Manevy aborda essa questão sem cancelar o legado do compositor, mas contextualizando suas obras dentro do tempo e da sociedade em que foram criadas.

“Ele é uma figura enigmática, um sambista do sul do Brasil, vestindo casacos no frio e fazendo sambas cariocas. Há uma mística em torno dele, desde as lendas de suas músicas chegarem ao Rio de Janeiro pela boca dos marinheiros até sua sofisticação musical que parece desproporcional à sua origem humilde,” explicou o diretor.

O Oscar de João da Silva

Em uma tarde comum de 1948, um jovem João da Silva, ainda longe do reconhecimento que ganharia anos depois, foi ao cinema em Porto Alegre. A experiência se revelou uma surpresa: uma de suas composições, “Se acaso você chegasse”, fazia parte da trilha sonora do filme americano “Lady, let’s dance” — conhecido no Brasil como “Dançarina loura”. O longa, dirigido por Frank Woodruff, havia sido lançado em 1945 e concorreu em duas categorias do Oscar: melhor trilha sonora e melhor canção original por “Silver shadows and golden dreams”, de Lew Pollack e Charles Newman. No entanto, a versão instrumental de um minuto e meio de “Se acaso você chegasse” não foi creditada a João, nem mencionada na indicação de melhor trilha sonora.

Agora, quase 80 anos após o lançamento do filme, a família do compositor gaúcho tomou a iniciativa de buscar reconhecimento. Eles enviaram uma carta para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo Oscar, solicitando que o nome de João da Silva seja reconhecido e incluído na indicação de 1945.

“É motivo de incompreensão para nós que a contribuição do compositor João da Silva continue, em pleno ano de 2024, sem o devido reconhecimento desta prestigiosa organização de Hollywood”, diz um trecho da carta. Até o momento, a Academia não se pronunciou sobre o pedido da família Silva.

“A obra saiu daqui do Rio Grande do Sul, composta pelo pai, e chegou aos EUA. Não sabemos como isso aconteceu, mas não resta a menor dúvida de que devemos buscar reconhecimento. Para nós, é motivo de grande orgulho”, declarou João da Silva Filho.

A reconexão com o passado esquecido

A reconstrução da genealogia familiar são elementos centrais do documentário. O filme, que explora também as raízes históricas de sua família, captura a emoção do encontro da família com suas origens. Uma das cenas mais tocantes do documentário mostra uma sobrinha de João emocionada ao descobrir que seus antepassados nasceram livres, algo que contrastava fortemente com as dificuldades enfrentadas pela maioria dos negros na época.

O Grupo de Estudos do Pós-Abolição da Universidade de Santa Maria, composto por 20 pesquisadores, teve um papel crucial na investigação das origens da família Silva. Quando a família Silva se deparou com a lacuna documental que marcava o período pré-abolição, os pesquisadores entraram em ação, explorando fontes históricas e trazendo à tona informações valiosas.

A descoberta mais notável foi a identificação do primeiro casal de africanos escravizados que chegou ao Brasil, vindo a se estabelecer na região de Mostardas, no Rio Grande do Sul. Em uma reviravolta do destino, o dono da fazenda onde trabalhavam morreu sem deixar herdeiros, e as terras foram legadas a esse casal, que se tornou livre em uma época em que a liberdade era um privilégio raro para pessoas trazidas à força da África. Uma poderosa lembrança da resiliência e da importância de preservar as narrativas daqueles que ajudaram a moldar a identidade do Brasil.

O filme traz à tona momentos pouco conhecidos da vida de João, como sua passagem por Santa Maria. Este período, logo após a Revolução de 1932, é explorado no documentário como um ponto crucial na formação do compositor. João serviu como soldado e foi acolhido pelas redes de solidariedade das famílias negras e dos Clubes Associativos Negros

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Última Atualização: 27/08/2024