Não, Taylor Swift não nos salvará, por Luís Felipe Miguel

A decisão da justiça, de suspender as contas de Pablo Marçal nas redes sociais online, é um passo importante na direção certa, mas não resolve o problema.

Há três níveis em que as questões que o coach coloca precisam ser enfrentadas.

Primeiro, a mais imediato, em relação à disputa paulistana.

Não existe dúvida de que são muitos os motivos que justificam a cassação da candidatura de Marçal – das irregularidades na convenção partidária ao abuso do poder econômico.

O PCO já está aí defendendo o coach, então convém explicar. A defesa da cassação não é “ficha limpa”, não é tutela de decisão do eleitorado. Pelo contrário: o que está em jogo é a possibilidade dos eleitores fazerem escolhas relativamente livres e limpas.

Para isso, um mínimo de equalização das condições de disputa é necessário, em particular a prevenção do abuso da força do dinheiro e do controle da comunicação. Cassar a candidatura de Marçal é necessário para garantir esse mínimo de lisura.

Depois, em relação à regulação das plataformas sociodigitais na internet.

Se não houver regulação, a cada eleição serão necessárias intervenções – que serão vistas como “censura” ou atos de força.

O Congresso, que seria o lugar para que tal regulação ocorresse, está controlado por picaretas que sonham fazer tudo o que Marçal está fazendo. Então cabe ao Supremo agir.

Ele não é craque em estabelecer equivalências? Então faça a equivalência entre as redes e a mídia convencional.

Claro que isso exige mobilização, pois sofrerá a oposição renhida das big techs, sócias, na prática, dos vigaristas que tomam conta da internet – afinal, lucram conforme eles lucram.

Por fim, em relação à qualidade do debate.

A grande armadilha da democracia eleitoral, aquilo que a transforma num instrumento muito mais de manutenção da ordem do que transformação radical da sociedade, é a redução do horizonte da política a conquista de votos. O eleitoralismo faz com que a única coisa que importe seja obter o melhor resultado na eleição que está chegando. Com isso, não existe possibilidade de acúmulo, não existe estímulo para a desconstrução das representações hegemônico do mundo social. Sempre é mais proveitoso remar a favor da correnteza, mesmo que essa correnteza seja conservadora, individualista, contrária aos interesses dos trabalhadores e dos grupos dominados em geral.

No Brasil, isto é acentuado pela urgência – real – de combater o bolsonarismo. Em nome desse combate, o discurso político da esquerda é sempre rebaixado. Temos que chegar no eleitor de “centro”, temos que cuidar para não assustar o evangélico conservador ou aquele que é vítima do discurso do empreendedorismo ou aquele que foi doutrinado nos valores da família tradicional e assim por diante.

O enfrentamento é sempre adiado para um próximo momento, mas esse momento obviamente nunca vem, porque temos uma eleição após a outra.

Valério Arcary, que dificilmente poderia ser chamado de “reformista”, escreveu recentemente: “Boulos já fez um reposicionamento de imagem para diminuir a rejeição. Ela é muito grande porque há vinte anos Boulos tem a trajetória de um lutador popular. Se Boulos se apresentasse com o rosto das eleições de 2020, o animador do MTST, a eleição estaria perdida. […] Nossa palavra de ordem deve ser: ‘Não Passarão’”.

Mas, como disse Felipe Demier, “se em toda eleição o argumento for sempre a necessidade premente de derrotar o neofascismo, e pra isso se abdicar de uma mobilização e uma pedagogia programática que avance a consciência e a organização dos trabalhadores, ficaremos sempre postergando o verdadeiro combate, ainda que com eventuais faustos eleitorais”.

Não há nunca um momento para educação política, para a disputa, para a elevação da consciência. É só adaptação, acomodação, capitulação. E daí na eleição seguinte vamos ter que recuar ainda mais, até porque, se tem uma coisa que a direita está fazendo hoje, é a desconstrução de todos os valores ético-políticos que um dia a gente achou que tinha conseguido firmar minimamente.

O objetivo da esquerda não é ganhar eleições. É mudar o mundo. Ganhar eleição pode ser um instrumento, nunca uma finalidade.

O pior é que nem os resultados eleitorais costumam vir – taí Marcelo Freixo, que não me deixa mentir.

Não costumo elogiar a deputada Tabata Amaral, mas ela demonstra muito mais firmeza e coerência no combate ao “fenômeno” Marçal do que o candidato da coligação PSOL-PT.

Não é só a “moderação”. É a aceitação de que a campanha pode ser tudo, menos um momento de educação política.

Boulos fica impulsionando vídeos em que comemora suas similaridades com Taylor Swift (eles têm a mesma altura) e insiste nos terríveis trocadilhos de confeiteiro. Essa é a cara da esquerda na maior cidade do país?

Se é para fazer campanha assim, mesmo uma vitória seria uma derrota. Mas o mais provável é que a derrota seja uma derrota mesmo.

Boulos é melhor do que isso. Tá na hora de colocar na rua uma campanha que deixe claro.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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Última Atualização: 26/08/2024