Reflexões nos 70 anos da morte de Getúlio Vargas: um legado ambíguo para a gestão pública brasileira
Em agosto de 2024, o Brasil relembra os 70 anos da morte de Getúlio Vargas, uma figura central na história do país, cuja trajetória política foi marcada por contradições profundas. Vargas, ao mesmo tempo em que se apresentou como defensor das classes trabalhadoras, consolidou um regime que centralizou o poder em suas mãos, utilizando a máquina do Estado para impor um controle autoritário sobre a sociedade brasileira.
Entre suas diversas contribuições, este artigo analisará a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), um órgão que desempenhou um papel controverso na transformação da administração pública brasileira.
Para compreender, plenamente, a criação do DASP, em 1938, é fundamental analisá-la dentro do contexto político e social da época, marcado pela ascensão do Estado Novo, regime de caráter autoritário instaurado por Vargas em 1937. Assumindo o poder em 1930, Vargas liderou um movimento que pôs fim à República Velha, dominada pelas oligarquias regionais.
Porém, em vez de democratizar a administração pública, Vargas optou por centralizar o poder, transformando o Estado brasileiro em um instrumento de controle político e social. O Brasil vivia um período de intensas mudanças, impulsionado pela industrialização e pela urbanização acelerada, mas também por um crescente movimento operário e pelas lutas sociais nas grandes cidades.
Nesse cenário de transição, Vargas identificou a necessidade de modernizar o Estado, não apenas para enfrentar os desafios econômicos, mas também para conter as pressões populares por reformas mais profundas. É sob esse contexto histórico que o presente artigo se propõe a questionar: o DASP, criado sob o governo de Getúlio Vargas, deixou algum legado positivo para o serviço público brasileiro ou foi, sobretudo, um instrumento de controle e repressão estatal?
Instituído por meio do Decreto-Lei nº 579 de 30 de julho de 1938, o DASP foi concebido para reorganizar, racionalizar e modernizar a administração pública no Brasil. Inspirado em modelos de gestão pública estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos e da Europa, o DASP tinha como objetivo garantir maior eficiência e profissionalismo na gestão dos serviços públicos.
Contudo, essa modernização não pode ser vista de forma neutra, pois o DASP também serviu para consolidar o poder de Vargas e reforçar o autoritarismo do Estado Novo. Embora o objetivo fosse tornar o serviço público mais eficiente, o DASP acabou promovendo uma lógica de controle e vigilância que permeou toda a administração pública. A centralização das políticas administrativas fortaleceu o Executivo, permitindo a Vargas alinhar as ações governamentais aos seus objetivos políticos e econômicos, muitas vezes em detrimento das demandas populares.
As mudanças estruturais promovidas pelo DASP ajudaram a consolidar um estilo de gestão que ainda caracteriza a administração pública brasileira contemporânea em muitos aspectos. A ideia de uma carreira pública estruturada, baseada no mérito e com possibilidades claras de ascensão, foi uma das inovações trazidas pelo DASP que, embora relevantes, também perpetuaram a lógica de um Estado voltado mais para a manutenção do poder do que para a promoção de reformas sociais profundas.
Além de suas contribuições para a estrutura administrativa, o DASP teve um papel crucial na formulação e implementação de políticas públicas. No entanto, ao centralizar o controle e introduzir métodos de gestão mais racionais, o órgão também serviu para reforçar o controle do governo federal sobre as ações administrativas, muitas vezes sufocando as iniciativas locais e regionais e limitando a participação democrática na administração pública.
Para além das críticas, o DASP foi fundamental para o desenvolvimento do Estado brasileiro, embora seu legado seja ambíguo. Ao introduzir práticas modernas de gestão, ele moldou uma administração pública mais eficiente e orientada para resultados, mas também consolidou um modelo de Estado que privilegiava o controle e a centralização em detrimento da participação democrática e das demandas populares. Embora extinto em 1990, o legado do DASP ainda permeia as práticas e estruturas da administração pública brasileira, perpetuando um modelo de gestão que, apesar de eficiente, carrega uma lógica de controle com raízes no período autoritário.
Diante desse contexto emaranhado de ambiguidades, a resposta à questão central deste artigo é complexa. O DASP deixou, sim, alguma herança benigna para o serviço público brasileiro, embora esse legado seja permeado por contradições. Ao refletirmos sobre os 70 anos da morte de Getúlio Vargas, é importante reconhecer tanto a importância do DASP quanto suas limitações e seu papel na consolidação de um Estado centralizador. Mais do que um órgão administrativo, o DASP foi uma ferramenta que Vargas utilizou para implementar reformas que, ao mesmo tempo que transformaram o Brasil, reforçaram desigualdades regionais, já existentes, por meio da centralização estatal.
A história do DASP é também a história do Brasil moderno, com todas as suas contradições. Sua criação e atuação na diversa realidade brasileira refletem os desafios e ambições de um país que, sob a liderança de Vargas, buscava se modernizar e se afirmar no cenário internacional, mas que também reproduziu lógicas autoritárias que, ainda hoje, influenciam nossa gestão pública.
Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), Mestre em Ciências Contábeis e Doutor em Administração.
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