“Parece que o argumento perdeu a força. Por falta de argumento, a gente fala qualquer bobagem que vem à boca”, disse Lula recentemente, ao criticar a disseminação de mentiras – e, acrescento eu, de violência verbal e ignorância – que contaminam o debate público. Primeiro, é preciso reconhecer a modéstia do presidente ao incluir-se entre essa gente. Se esse fenômeno já existia no Brasil, como em qualquer outra sociedade, é preciso observar que a má-fé se agravou, e muito, desde a ascensão Bolsonaro.
Ainda hoje, após a derrota nas urnas do pior presidente que a democracia brasileira já teve, mentiras deslavadas continuaram a interditar o debate público, com seus criadores tentando confundir a população a respeito de uma grande quantidade de informações imprescindíveis, de modo a atingir e desmoralizar a legitimidade do atual governo. Os detratores de Lula diriam, mentindo como sempre, que o atual presidente é quem mente e diz bobagens. Eles sabem que não é verdade, mas como desaprenderam a argumentar (ou nunca o souberam), valem-se da metralhadora giratória da ignorância para desaguar seus ressentimentos.
O ex-presidente, que tardou a sair do poder, é um exemplo didático de como perverter o debate público com mentiras, notícias falsas e ataques verbais vexatórios contra adversários. Bolsonaro perdeu o palanque, mas seus quatro anos de mandato – não digo governo, porque ele não governou, é incapaz fazer algo próximo disso – deixaram um lastro de comunicação desonesta que não só Lula, mas todos nós temos o dever de combater.
Foi uma verdadeira ode à ignorância, que me trouxe à lembrança um trecho do prefácio escrito por Gabriel Deville em uma edição de O Capital, de Karl Marx, publicada pela Edipro no fim dos anos 1980. “Sustentar, seja qual for a matéria em questão, que a ciência é inútil, que o estudo perdeu sua razão de ser, não é mais que um pretexto para se dispensar de estudar (…) e tentar desculpar-se através de uma obstinada ignorância”, observou.
Como já escrevi em CartaCapital, a terra sem lei das redes sociais coloca em risco não só a civilidade necessária para o convívio, como também a própria democracia. É a festa dos ressentidos ante o saber e as conquistas de quem leva a democracia a sério. Volto ao tema para acrescentar que o próprio Marx já se preocupava com a força dos subterfúgios que os donos do capital há tempos utilizavam para confundir a classe trabalhadora e responsabilizá-la por seu próprio infortúnio, provocado, de fato, pela brutal desigualdade resultante da acumulação de capital nas mãos de tão poucos.
O que os dispositivos de comunicação-relâmpago de nossa época acrescentaram à fabricação de alienação apontada por Marx foi a possibilidade do anonimato dos violadores de fatos, o que favorece a disseminação da falsa consciência. Marx, sem pretender ser o único inventor das ideias que propagou, soube extrair de suas análises os fundamentos dos problemas sociais sobre os quais se debruçou – a começar pela constatação de que a história é sempre a história da luta de classes.
Se a distorção dos fatos e dos argumentos a favor dos detentores do capital não é um fenômeno novo na história da luta de classes, seu efeito deletério nos tempos antidialéticos da comunicação via redes sociais foi percebido com argúcia por Lula em sua declaração sobre a fragilidade do argumento. A força – produtiva, não destrutiva – dos argumentos depende de dois fatores: a honestidade de quem fala e a boa-fé dos que contra-argumentam.
A frase de Lula nos faz pensar sobre as dificuldades que ele enfrenta, desde o seu lugar de líder de uma nação que deseja produzir algum pacto social, algum tipo de consenso entre forças políticas contrárias. Tal empreitada depende, entre outras coisas, da boa-fé dos oponentes – ou seja, da força e da honestidade de nossos argumentos. Cabe a todos nós, que rejeitamos ferir a democracia com qualquer jogo desonesto, sustentar o bom debate público e denunciar os disseminadores de mentiras. •
Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Por um debate honesto’