Duas semanas após a incursão surpresa na Rússia, a Ucrânia se esforça para encontrar um equilíbrio entre conquistar território além da fronteira em Kursk e perder-lo no coração da frente oriental no centro de Donetsk. Na sexta-feira 16, o comandante em chefe da Ucrânia, Oleksandr Syrskyi, relatou avanços de cerca de 3 quilômetros por dia em território russo, mas as forças de Moscou ganharam quase 5 quilômetros neste mês, enquanto o Kremlin aposta fortemente na captura do centro de Pokrovsk.

Para muitos ucranianos, as duas lutas estão relacionadas e o resultado final é incerto. Esperava-se que a Rússia transferisse forças significativas do leste para defender Kursk. Mas Hanna Shelest, pesquisadora sênior do Centro de Análise de Política Europeia, disse que, apesar de o ousado ataque ucraniano ter “corrido melhor do que o esperado”, na realidade “a Rússia, provavelmente, não moveu forças suficientes do flanco oriental, como se previa”.

Na quinta-feira 15, o Instituto para o Estudo da Guerra, um grupo de pensadores dos Estados Unidos, disse acreditar que apenas “elementos selecionados de unidades irregulares russas” estavam a ser realocados para Kursk, e que o Kremlin, provavelmente, seria “extremamente avesso a retirar unidades militares russas envolvidas em combate” perto de um setor prioritário como Pokrovsk. O Ministério das Relações Exteriores da Rússia acusou a Ucrânia de usar foguetes Himars, de fabricação norte-americana, para explodir uma ponte estratégica próxima de Glushkovo, em Kursk, 11 quilômetros ao norte da fronteira internacional, medida que pode levar ao corte de um pedaço do território russo na linha de frente a sudoeste dessa aldeia. Em Pokrovsk, enquanto isso, autoridades intensificaram a evacuação de civis. Serhiy Dobryak, chefe da administração militar da cidade, alertou que as forças russas tinham “quase se aproximado” do local e que o alarme sobre seu futuro estava crescendo.

Até um ano atrás, Pokrovsk era considerada segura o suficiente para servir de base regional, onde jornalistas e trabalhadores humanitários podiam passar a noite. Suas conexões rodoviárias e ferroviárias ligam a cidade central de Dnipro a Kramatorsk e Sloviansk. Na prática, sua captura cortaria em duas a parte da província de Donetsk ainda em poder da Ucrânia. Na sexta-feira à noite, o presidente Volodymyr Zelenskiy também vinculou as batalhas. A incursão em Kursk, explicou, foi para “destruir a logística do exército russo e drenar suas reservas”. Syrskyi, acrescentou, o havia informado “sobre os nossos passos defensivos no Donbass”, incluindo aqueles em Pokrovsk, “bem como nosso avanço na região de Kursk”.

Embora os soldados ucranianos na região de Sumy, no nordeste do país, estejam felizes o suficiente com o sucesso inicial na fronteira em Kursk, não é difícil encontrar céticos da estratégia geral. Um deles é Oleksii, integrante da infantaria que não quis que sua unidade fosse identificada. “Devemos defender o que temos. Atacar Kursk tira bons soldados de Pokrovsk, desvia algumas tropas russas, mas apenas move o problema de um lugar para outro”, disse, antes de acrescentar uma formulação caracteristicamente ucraniana: “Minha mãe sempre me disse: mantenha a sua posição”.

Há rumores persistentes de que o coronel Emil Ishkulov, popular comandante da 80ª brigada da Ucrânia, agora entre as envolvidas na incursão em Kursk, foi removido de seu posto no fim de julho por ter se oposto à incursão na Rússia, incerto se sua unidade tinha força para essa tarefa. Na época, soldados da unidade fizeram um apelo público malsucedido para a sua reintegração.

Zelensky comemora, mas muitos estão céticos quanto aos ganhos práticos da investida

A Estônia, cujas autoridades de inteligência são alguns dos melhores analistas das intenções russas, disse na sexta-feira 16 não haver sinais de que Moscou tivesse forças suficientes para um contra-ataque em Kursk, e que sua resposta ainda estava mal coordenada – refletindo, talvez, uma priorização do Donbass. “Ainda não há indícios de que as forças armadas russas tenham contingentes e áreas suficientes para aplicar ações tão significativas num contra-ataque”, afirmou o tenente-coronel Mattias Puusepp, vice-chefe do Estado-Maior das forças de defesa da Estônia. “As ações tomadas são de natureza defensiva, ou seja, estabelecem linhas defensivas, movem unidades.”

No sábado 17, entretanto, houve um triste sinal de represália russa. Um míssil balístico explodiu no centro de Sumy, cidade ucraniana mais próxima da incursão transfronteiriça, a primeira vez que a cidade em si foi atingida em quase uma semana. Imagens dramáticas de um incêndio e carros queimados apareceram nas redes sociais e dois civis ficaram feridos, segundo autoridades locais.

Sumy, que tem uma população de cerca de 250 mil habitantes, permaneceu movimentada e animada no calor do verão, embora o barulho das explosões de bombas planadoras russas a distância tenha aumentado recentemente. Seus hospitais têm, porém, se enchido de vítimas da linha de frente, e há uma semana um apelo por doações de sangue foi feito para tratar soldados feridos. Levou uma hora para a necessidade ser atendida.

A cidade também recebeu cerca de 4 mil refugiados das aldeias agrícolas na área em direção à fronteira ao norte, muitas das quais planejam alugar apartamentos. Na zona de fronteira, a 10 quilômetros da divisa, enquanto isso, permanecem apenas um pequeno punhado de civis e pouca infraestrutura funcional. Uma loja com janelas quebradas ainda vendia mantimentos, mas a maioria dos lugares estava fechada com tábuas. Uma agência humanitária, a Global Empowerment Mission, fornece quase 26 mil rações de alimentos por mês visitando aldeias na linha de frente, toda semana, para distribuir para a população que ficou, pois não há suprimentos no mercado.

Alguns ucranianos insistem em permanecer, como Valentyna Mykolaiivna, aposentada de Yunakivka, que diz que não estaria disposta a se mudar e viver com uma de suas três filhas: “Estou muito velha, não posso recomeçar. Não quero deixar o que tenho”. Mykolaiivna mostrou sua casa. É muita coisa para abrir mão: uma firme construção de alvenaria, um ganso e galinhas no quintal, milho verde, beterraba, maçãs e mais hortaliças num campo nos fundos, onde há cabras amarradas. Tem sido muito perigoso ir à igreja, diz, mas é calmo quando a visitamos.

O risco para ela é real, embora a mulher de 62 anos seja enfática ao dizer que os militares da Ucrânia fizeram a coisa certa. “É uma boa ideia, eles os empurraram para trás. Deixe-os ficar onde estão. Por que eles querem vir para cá? Não têm terra suficiente?” Mais tarde ela se abaixa e, da terra ucraniana, apanha uma grande melancia e nos oferece como presente. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No próprio eixo’

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Última Atualização: 22/08/2024