Iracema Silva de Oliveira cresceu em uma comunidade acuada pela violência da guerra às drogas. Toda a família estava envolvida “com a vida ilícita”. Aos 7 anos, perdeu a mãe. Na adolescência, o pai. Pouco depois, um irmão morreu em confronto com a polícia e outro foi assassinado por traficantes rivais. Ela e a irmã mais nova cresceram “jogadas de casa em casa”, perambulando entre os lares de amigos e do que restou da sua família na Rocinha, a maior favela do País, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Seguir o caminho dos pais foi natural: “Quando vi, já estava nessa vida de crime”. Aos 25 anos, Iracema foi presa por tráfico de drogas. Passou seis anos em regime fechado e, durante esse período, teve a oportunidade de voltar a estudar e terminar o Ensino Médio. “Um novo mundo se abriu. Ia bem nas aulas, tirava boas notas. Isso me deu vontade de tentar outra vida.”
Auxiliada por uma agência de empregos que faz a ponte entre pessoas presas e empresas, começou a trabalhar quando passou para o regime semiaberto. Mesmo sem vínculo empregatício nem acesso a direitos trabalhistas, agarrou a oportunidade. Nesse meio-tempo, conheceu a ONG Nova Rota, que oferece bolsas de estudo para pessoas egressas cursarem o ensino superior. Mais uma vez, foi bem nas provas, avançou no processo seletivo e ganhou uma bolsa para estudar Psicologia na Universidade Estácio de Sá. “Nunca me imaginei na faculdade. Sou a primeira pessoa da família, isso é motivo de muito orgulho”, conta chorando. “As lágrimas são de gratidão, porque lá é o meu mundo encantado, meus pensamentos se ampliaram, minha vida mudou em todas as áreas, e hoje sei que sou um exemplo bom para meus filhos seguirem.”
Durante esses oito anos que está em liberdade, muitas vezes foi assediada pelo crime organizado com propostas sedutoras de “trabalho fácil e lucro imediato”. Mesmo nos momentos de maior dificuldade financeira, recusou as ofertas e manteve-se firme nos estudos. Aos 41 anos, ela faz planos para o futuro: começou a procurar estágio em Psicologia e está ansiosa para começar a atuar na área. “Faço a diferença na vida dos meus filhos, da minha irmã. Sei que vou fazer a diferença também na vida dos meus futuros pacientes”, afirma a estudante do sexto período.
A iniciativa será anunciada em um encontro mundial de universitários egressos do sistema penitenciário na capital paulista
Iracema é um dos 22 bolsistas do Nova Rota, projeto criado em 2019 por ex-alunos da Faculdade de Direito da USP, que oferece bolsas de estudo, mentoria e apoio multidisciplinar a pessoas egressas do sistema prisional. “Acreditamos na educação como ferramenta para otimizar potencialidades individuais e, consequentemente, o processo de reintegração social”, afirma a coordenadora do projeto, Katherine de Almeida Martins.
A Nova Rota é uma das organizações que estarão presentes em um encontro mundial de estudantes universitários egressos do sistema prisional no Museu do Futebol, em São Paulo, em 31 de agosto. Na ocasião, será lançada a Rede Global de Acadêmicos da Liberdade, uma espécie de LinkedIn para facilitar a recolocação profissional de presos. À frente dessa iniciativa está a Incarceration Nations Network (INN), ONG de Nova York presidida pela doutora Baz Dreisinger, professora do John Jay College of Criminal Justice da City University of New York e autora do premiado livro Incarceration Nations: A Journey to Justice in Prisons Around the World. Iracema está ansiosa para conhecer a plataforma no evento: “A maior dificuldade é encontrar empregadores dispostos a oferecer uma oportunidade”.
Com mais de 800 mil pessoas encarceradas, o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial, atrás apenas de China e EUA. Segundo Martins, quatro de cada dez detentos têm menos de 29 anos de idade, e pouco mais de 10% dessa população completou o Ensino Médio. Voltar a estudar durante o cumprimento da pena, além de possibilitar novos caminhos, contribui para a remissão penal. A Lei de Execuções Penais prevê que a aprovação em exames como o Encceja e o Enem, além da dedicação à leitura, serve para abater o tempo de privação de liberdade.
Foi com esse objetivo que Patrícia Vergílio, de 42 anos, leu centenas de livros durante os cinco anos em que esteve presa. Devorou a obra de Zíbia Gasparetto e aprofundou-se em literatura espírita porque trazia conforto e “fazia o tempo passar mais rápido”. Quando saiu da prisão, em 2020, fez um curso técnico de Administração de Empresas. Teve dificuldade para se adaptar à sala de aula e sofreu preconceito dos colegas por ter sido presa. Pela internet, conheceu o Nova Rota, onde trabalha há três anos. Há poucas semanas, começou o curso de Serviço Social no Centro Universitário Braz Cubas, em Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo. “Tenho muito orgulho de chegar aonde cheguei. Quando visito as amigas da cadeia, elas dizem que querem ser como eu.”
De acordo com um relatório produzido pelo Departamento Penitenciário Nacional em 2022, em parceria com pesquisadores da UFPE, 33,5% dos indivíduos que deixam as cadeias por decisão judicial, progressão de regime ou fuga reincidem em práticas criminosas em até cinco anos. Para Sofia Fromer, coordenadora do Justa, centro de pesquisa que atua no campo da economia política da Justiça, gasta-se muito para prender no Brasil, e quase nada para a reinserção social dos apenados. Em média, para cada real investido em ações para a ressocialização dos presos, os governos estaduais gastam 1.050 reais com o sistema carcerário e 4.389 reais com policiamento ostensivo nas ruas, revela um levantamento feito pela organização, com dados coletados em 16 estados.
Dentro do cárcere, uma minoria tem oportunidade de estudar (21%) ou trabalhar (24%), revela o estudo. Fazer as duas coisas simultaneamente, estudar e trabalhar, é um “privilégio” de 4,6% dos apenados. “É um sistema prisional que não oferece possibilidades para essas pessoas voltarem à sociedade com um novo ofício para refazer a vida”, lamenta Fromer. Para a especialista, a única forma de romper o ciclo de violência seria o Estado inverter a ordem de investimentos. Atualmente, há 3 mil detentos cursando ensino superior ou técnico-profissionalizante no Brasil, revela um levantamento da Nova Rota, com base em dados do censo penitenciário. Entre os que já conquistaram o diploma, nenhum deles retornou à prisão.
Filho de uma policial militar e um dependente químico, Eder Viana, de 36 anos, caiu cedo na vida do crime e sem demora foi preso. Nos cinco anos em regime fechado, leu muito e ajudou na manutenção da biblioteca da penitenciária. “Queria que meus filhos tivessem orgulho de mim, e no crime, por mais dinheiro que se tenha, a admiração não é verdadeira.” Com o Nova Rota, obteve a bolsa para cursar Engenharia de Software na Estácio. Atualmente, trabalha como pintor predial e busca estágio na área de formação. “Está difícil, não falo inglês, mas estou me preparando.”
Com quatro passagens pelo sistema socioeducativo, Anderson Carvalho virou a página do passado criminoso e hoje trabalha com jovens internos da Fundação Casa, para que eles também tenham chances para reconstruir suas vidas. “Quando vi que tinha uma rede de apoio, gente que confiava em mim, percebi que era possível acessar outros espaços.” Constituiu família e orgulha-se de ter conseguido comprar uma casa para a mãe “na comunidade” e outra para ele, a esposa e os cinco filhos. Hoje, aos 28 anos, cursa o 5º semestre de Direito na Unip, em São Paulo, e trabalha no Instituto Papel de Menino. “A gente tenta virar a chave na cabeça desses jovens. Oferecer oportunidades e criar vínculos é o melhor caminho.”
Pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Roberta Fernandes dedica-se aos estudos em reincidência criminal e há pouco tempo descobriu um dado inesperado ao coletar informações de jovens internados na Fundação Casa: “Quanto menor o índice de escolaridade, menor a reincidência”. Achou estranho, debateu o resultado com pesquisadores de outros países, que confirmaram resultados parecidos. Segundo ela, jovens que nunca tiveram acesso à educação quando estavam em liberdade costumavam agarrar a oportunidade quando isso era oferecido no sistema socioeducativo. Isso possibilita a ressocialização e evita a reincidência. Nas penitenciárias, acrescenta, os trabalhos oferecidos aos apenados pouco contribuem para a busca de emprego em liberdade. “Costurar bolas ou fazer artesanato não garante o sustento das suas famílias depois. Claramente, não é uma prioridade do Estado de criar reais oportunidades.” •
Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Corrida de obstáculos’