Até recentemente, no Brasil, desastres ou emergências ambientais eram frequentemente vistos como fatos isolados. Essa hipótese, no entanto, não se sustenta mais. Segundo o Instituto ClimaInfo, 92% dos municípios brasileiros enfrentaram algum tipo de desastre natural em menos de uma década, entre 2013 e 2022, como as estiagens e queimadas severas na Amazônia, na Caatinga, no Cerrado e no Pantanal, além de inundações de grandes proporções, como a que ocorreu no Rio Grande do Sul. Para além das consequências imediatas, como destruição, mortes e a extinção de parte da biodiversidade, permanecem efeitos a médio e longo prazo que serão profundamente sentidos: entre eles, a fome de quem fica ou precisa se deslocar.
O Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (SOFI 2024), divulgado em julho, revelou que 8,5 milhões de pessoas ainda estavam em situação de subalimentação no triênio 2021-23. Por sua vez, a PNAD Contínua: Segurança Alimentar, do IBGE, divulgada em abril de 2023, apontou que 8,7 milhões de pessoas vivem sem o direito básico à alimentação, ou seja, passando fome. Este resultado, embora muito abaixo das 33 milhões constatadas em inquérito da Rede Penssan no biênio 2021-22, revela um avanço expressivo das políticas que, em 2014, haviam retirado provisoriamente o Brasil do Mapa da Fome.
Contudo, mesmo os roteiros de sucesso precisam ser adaptados conforme a realidade. Passados dez anos, novos desafios se impõem, e as políticas que se mostraram eficazes até aqui, como a redução do desemprego, a valorização do salário mínimo, a volta revigorada do Bolsa Família e o reajuste no repasse do governo federal para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), já não são suficientes. Do ponto de vista político e social, essas ações precisam ser mantidas e fortalecidas, mas é crucial acrescentar medidas que contemplem as “novas fomes”, entre elas as resultantes das tragédias socioambientais em diferentes partes do país.
As “novas fomes” afetam aqueles que sofrem empobrecimento súbito ao perderem suas moradias, como as mais de 4,2 milhões de pessoas desabrigadas em dez anos devido a eventos extremos, conforme mapeado pela Confederação Nacional de Municípios. Também incluem as centenas de milhares de empregos perdidos e o fechamento de pequenos negócios. Além disso, é preciso considerar os agricultores familiares, que, em decorrência das mudanças climáticas, não conseguem mais produzir como antes, seja devido a alterações no regime de chuvas ou ao aumento da temperatura. Em muitos casos, toda a produção é perdida ou comprometida, resultando na alta dos preços dos alimentos, potencializada por movimentos especulativos, mas, sobretudo, pela incapacidade de oferta de produtos básicos.
Essas condições, observadas no Sul do país, também ocorrem em outras regiões, afetando gravemente populações negras, periféricas, indígenas e de comunidades tradicionais, em um contexto de racismo ambiental que empurra esses grupos para situações de maior vulnerabilidade. No Norte, a estiagem de 2024 já alerta para o risco de uma nova seca recorde, como a vivida no ano anterior por famílias agricultoras e pescadores, majoritariamente indígenas e tradicionais, que enfrentam maiores dificuldades para produzir para autoconsumo ou têm o acesso a alimentos comprometido pela impossibilidade de navegação em rios secos.
Essa realidade demanda atenção. Na esfera institucional, protocolos de governança e um Plano Nacional de Adaptação estão sendo desenvolvidos, embora ainda incipientes em termos de participação social. Esses esforços buscam definir as atribuições de cada ente da federação, exigindo uma construção consensual. É indispensável reforçar a capacidade de monitoramento, para definir prioridades no enfrentamento das situações mais urgentes e dos públicos em maior vulnerabilidade, o que requer diagnósticos precisos e rotas de implementação bem estabelecidas. Para que essas ações sejam eficazes, a construção conjunta com as populações afetadas e parcerias com suas representações e movimentos sociais é fundamental. No Rio Grande do Sul, por exemplo, cozinhas solidárias organizadas pela sociedade civil demonstraram capacidade de resposta rápida, e o governo poderia contribuir com iniciativas como essas através do fornecimento de equipamentos e fortalecimento da logística.
Embora muitas ações imediatas sejam necessárias, é essencial olhar além, pois políticas de médio e longo prazo adquirem igual ou maior importância. Em áreas de desertificação ou sujeitas a inundações, os solos, antes férteis, passam a exigir processos de recuperação que podem se estender por anos, ou correm o risco de serem extintos. Do ponto de vista econômico, é urgente incorporar nas políticas de transferência de renda aqueles que, historicamente afetados pelas dinâmicas de desigualdade, ingressaram ou aprofundaram-se na pobreza devido às tragédias climáticas. Enfrentar eventos climáticos, adaptar-se e mitigar suas consequências têm um custo econômico evidente, que deve ser contemplado no orçamento de forma perene.
Mitigar os efeitos da crise ambiental é urgente, assim como adaptar-se a eles, mas continuaremos “enxugando gelo” se adiarmos o enfrentamento das causas do problema. No caso brasileiro, o aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEE) coloca em primeiro plano a necessidade categórica de coibir o desmatamento. Mais amplamente, é urgente repensar o modelo agrícola monocultural, guiado pela lógica das commodities e negligente com os impactos ambientais, além de contribuir para o aprofundamento das desigualdades de raça, gênero e classe.
Como já amplamente comprovado, superar a fome é uma decisão política, e o enfrentamento das mudanças climáticas não parece seguir caminho diferente.