Em uma cozinha localizada no bairro Mário Quintana, em Porto Alegre, Tia Lúcia dedica sua vida à preparação de 300 marmitas diárias. Foto: Clara Aguiar

Por Clara Aguiar
Do Brasil de Fato

“Eu levanto às quatro da manhã, faço o almoço e a janta, preparando para que tudo esteja pronto para ser servido. Termino, limpo as panelas, lavo tudo e às quatro horas da manhã já estou de pé de novo. É assim que funciona.” 

O trabalho de Lúcia da Rosa, de 68 anos, começa quando a cidade ainda dorme. Enquanto muitos estão confortáveis em suas camas, ela já está de pé, acendendo a chama do fogão e preparando o almoço para ser distribuído aos que mais precisam. Em uma Cozinha Solidária localizada na Rua José Carlos Braga, no bairro Mário Quintana, em Porto Alegre, Tia Lúcia, como é carinhosamente chamada, dedica sua vida à preparação de 300 marmitas diárias, distribuídas ao meio-dia e às sete da noite para alimentar as vilas da região. 

Há quatro anos, as refeições que ela prepara diariamente na Cozinha Solidária se tornaram sinônimo de esperança para muitos. Foto: Clara Aguiar

Tia Lúcia é presidenta da Associação de Reciclagem e da Cozinha Solidária Força e Coragem, um nome que, por si só, traduz o que a motiva todos os dias. A cozinha surgiu durante a pandemia, em um período em que a insegurança alimentar se espalhava por todo o país. Diante desse cenário, Tia Lúcia decidiu agir. Há quatro anos, as refeições que ela prepara diariamente se tornaram sinônimo de esperança para muitos. Rapidamente, a cozinha se transformou em um ponto de apoio essencial para as vilas do bairro. 

Sozinha, Tia Lúcia prepara aproximadamente 300 marmitas por dia. Foto: Clara Aguiar

“É muito importante cuidar do povo, né? Fazer o povo feliz, porque não tem coisa mais linda no mundo do que você chegar com a comidinha feita na hora e ouvir: ‘ai, dona, como está boa essa comidinha, vou deixar um pouquinho para a noite”, relata Tia Lúcia. Ela encontra na solidariedade a possibilidade de alimentar centenas de pessoas.

“Não tem coisa mais linda no mundo do que você chegar com a comidinha feita na hora”, afirma Tia Lúcia. Foto: Clara Aguiar

“Conto com parceiros para pagar a luz, a água e o gás. Agora o governo federal está mandando a carne, está mandando a proteína. Nós estamos conseguindo alguma coisa… Mas ainda é pouco.” Ações como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), operacionalizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) em conjunto com as cooperativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tem sido um dos apoios que Tia Lúcia recebe para assegurar alimentação para famílias em situação de vulnerabilidade.

Orgulho de ser recicladora

Mas a sua atuação vai muito além das refeições que prepara. Tia Lúcia é, acima de tudo, uma recicladora. “Foi meu primeiro serviço, né?”, conta. Nos fundos do terreno da Cozinha Solidária, está a Unidade de Triagem liderada por ela e que leva sustento para duas colaboradoras. 

Na UT liderada por Tia Lúcia, os materiais coletados são triados, limpos e preparados para serem enviados aos atravessadores. Embora o pagamento por esses materiais não seja significativo, ela valoriza o impacto ambiental positivo da reciclagem. “Não me interessa que eles não paguem muito. Só em saber que isso aqui não vai durar 500 anos lá naquele aterro, pra mim já é um prazer. Porque é 500 anos que eu posso salvar alguém na face da Terra”, afirma.

Para ela, o ato de reciclar não é apenas um meio de sustento, mas uma missão, uma maneira de curar a Terra. “Nós, recicladores, somos os doutores da Terra. Nós curamos a Terra porque nós catamos do chão o lixo que nem o lixeiro pega, mas nós pegamos. Nos abaixamos, pegamos e fazemos geração de renda. Não é muito, mas a gente não quer muito, a gente quer só salvar o planeta. Se a gente não cuidar do nosso planeta, quem é que vai cuidar?” 

Sua dedicação à Cozinha Solidária e à reciclagem é impulsionada por um sentimento de cuidado com o mundo em que vive. “Porque eu quero respirar, eu quero viver, né? E como é que eu vou viver num planeta desse com enchente, com devastação, desmatando tudo? Não posso viver. Por isso estamos juntando e limpando a rua.” Ela expressa uma frustração com a falta de políticas para preservar o meio ambiente, destacando a necessidade urgente de mudanças. “Essa enchente que deu. Não querem deixar a água correr, não querem deixar uma vertente, não querem plantar uma árvore, não querem conservar uma natureza. Mas daí nós vamos morrer no concreto.” Para ela, sua missão de alimentar e reciclar reflete seu compromisso com um futuro mais possível para todos.

“As pessoas dizem: ‘ah, vai virar um lixão’. Não vai virar um lixão. Por exemplo, aquilo ali é roupa, já vai sair pra ser doado para uma vila, né? Podia ter ido pro aterro, mas por que eu vou botar no aterro se tem gente passando frio, passando fome, passando necessidade?” E assim, entre a montagem das marmitas que prepara e o som dos materiais recicláveis sendo separados, Dona Lúcia segue a sua jornada. 

Entre tanta dedicação, também há muitos sonhos em Tia Lúcia: “Meu sonho é ter um galpão só pra reciclagem, meu sonho é botar um teto solar aqui pra economizar a luz, o meu sonho é viajar, mas pra viajar eu tenho que ter um dinheiro, né?”, confidencia. 

Ali, alimentação e reciclagem se entrelaçam, duas frentes de uma mesma luta por um mundo mais justo e sustentável. Cada marmita entregue e cada quilo de material reciclado na Associação é uma forma que Tia Lúcia encontrou de cuidar das pessoas e também da Terra. “Tô na força e na coragem aí, querendo dizer pro povo que é na força e na coragem que a gente faz as coisas, né?” Porque é na coragem que eu fiz, na força de vontade de sair para a rua e lutar.”

Edição: Katia Marko/ BdF

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Last Update: 21/08/2024