Para uma crítica do identitarismo

Para uma crítica do identitarismo

No frigir dos ovos, ele atrela-se à dinâmica do “não há alternativas”, pois é reativo e nichado. O encontrar em-si de si trava os sentidos de pertencimento e da luta comum, o que convém ao capitalismo – em especial, no século XXI. Além disso, suas bandeiras podem ser muito lucrativas…

por Douglas Barros

TÍTULO ORIGINAL: Sérios problemas do identitarismo bem-intencionado

É evidente que o colonialismo, enquanto constituição imaginária, se perpetuou nas formas que organizam a vida contemporânea. Durante o século XX, porém, inúmeras apostas se deram no sentido de que a modernização seria capaz de suplantar a desigualdade racial, ou de gênero, curando as feridas abertas pela tragédia colonial. Hoje, século XXI, já se pode dizer que essas promessas tornaram-se ilusões perdidas.

Com o desenvolvimento do capitalismo, o caráter excludente da máquina do mundo moderno só se tornou maior. Para legitimar a exclusão, a noção racial tornou-se o onipresente azeite a lubrificar a máquina de um inconsciente que naturalizou a separação humana entre raças. Basta olhar o levante de extrema direita no Reino Unido, ocorrido na semana passada, para entender como a noção racial é sempre a alavanca privilegiada dos fascismos.

Não bastasse isso, o capitalismo do século XXI aprendeu que, distante da tensão do senhor e do escravo, o trabalhador podia ser conduzido à colaboração. Para tanto, sequestrar sua demanda atrelando-a ao consumo seria fundamental ao passo que na gestão da vida social era preciso um reconhecimento unilateral das demandas de pertencimento de grupos que serviriam para encobrir a dimensão concreta das lutas.

Talvez para dar resposta a esse quadro seja importante lembrar uma crítica dialética, ocorrida desde pelo menos metade do século passado, na qual se percebia que racialismo e racismo formavam um todo dinâmico. O próprio racialismo não apenas gera a sua contraparte – como Stuart Hall dizia; é a raça que produz o racismo – como ele depende do racismo para garantir a manutenção de seu sentido.

Para ter uma dimensão desse processo basta observar o antirracismo identitário que não busca a superação definitiva da racialização. O curioso é que não faz isso por uma escolha consciente, mas porque o racismo tornou-se o motivo de sua sobrevivência. Quer dizer é aquilo que possibilita sua própria existência como sentido e ação – isso sem falar que a pauta racial se tornou bem lucrativa… Por isso, trata-se de um antirracismo racialista, totalmente atrelado à dinâmica do “não há alternativas”.

Como mostra Haider: a expressão “política identitária” partiu de um grupo de militantes negras e lésbicas que tinham como horizonte o socialismo revolucionário.

Nele se trata de identificações que, apesar de não evocarem nenhuma essência, nem por isso deixam de dar sentido à pratica política do coletivo: “não são apenas mulheres, não são unicamente negras, não são apenas lésbicas” se lê no manifesto que continua, “não são apenas da classe trabalhadora”. O que são? “pessoas que incorporam todas essas identidades”. Se nenhuma identificação determina a essência de um sujeito, pois, aquilo que o sujeito é, reside na sua capacidade de transitar por todas as identificações.

Como essa posição rica e complexa foi transfigurada no seu contrário? Como a transformação social do capitalismo tornou a noção de identidade um fim em si mesmo?

Importa lembrar que o identitarismo é o assassinato da alteridade desde que a Europa construiu identidade para todas as populações de além-mundo no início da modernidade. Na contemporaneidade, o esvaziamento das potencialidades transformadoras da identidade foi se consolidando de maneira vagarosa com o capitalismo do século XXI ao reidentitarizar as identidades para geri-la.

Contra essa posição está Fanon que nos impõe a necessidade de pensar sobre o negro, não para reduzi-lo àquele organizado pelo identitarismo colonial, mas para entender de maneira radical a fonte dos sofrimentos e das agruras mantidas pela herança colonial afim de superá-las ao superar a forma como reproduzimos nossa vida social.

Felizmente, muitos antes de nós se debruçaram nessa questão, não é um problema novo. Asad Haider, por exemplo, demonstra uma singular conversa de Malcom X na qual ele teria dito em 1964: “não se pode ter capitalismo sem racismo”. O desnudamento da estrutura que organiza o racialismo como gestão da racialidade, propicia a Malcom se orientar para a saída da identidade ofertada pela reprodução social que organiza os espaços raciais.

Malcom X foi morto justamente porque queria ir além dos limites identitários. Retornar à sua resposta é mais do que necessário, é urgente num mundo no qual o futuro do capitalismo ameaça nos levar à extinção.

Notas:

1 HAIDER, A. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. Tradução Leo Vinicius Liberato. São Paulo: Veneta, 2019, p.31

2 HAIDER, 2012, p.32

3 BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016

Douglas Barros – Psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Unifesp.

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Last Update: 20/08/2024