As últimas décadas trouxeram uma velocidade de comunicação e compartilhamento de informações antes imaginada apenas em filmes de ficção científica. Se hoje podemos acessar o mundo inteiro em segundos, também podemos nos perder em um mar de desinformação, mentiras e discursos de ódio, exclusão e discriminação. E esta é uma equação que ainda está longe de ser solucionada.
Entre os dilemas enfrentados pelas democracias contemporâneas, a regulamentação das ferramentas de inteligência artificial, das plataformas digitais e das big techs é uma das mais urgentes. A cada nova eleição, essa necessidade se acelera, escancarando as vulnerabilidades a que todos estamos expostos. Nas redes sociais, a realidade e as fake news dividem a mesma tela, e o tribunal da internet nem sempre consegue julgar com justiça.
Enquanto as big techs atuam politicamente para inviabilizar iniciativas como o PL das Fake News e o PL 2338/2023, que propõe regras para o uso de ferramentas de inteligência artificial no Brasil, o país se prepara para eleger prefeitos e vereadores em mais uma eleição sem que essas regulamentações tenham sido concluídas.
O bilionário Elon Musk, dono da rede social X, se recusa a cumprir determinações da Suprema Corte brasileira. Musk, frequentemente celebrado como visionário tecnológico, usa sua fortuna e influência para moldar o debate político de forma a beneficiar seus interesses. Sob uma fachada de inovação, apoia políticas neoliberais que favorecem a desregulamentação e a privatização, enquanto ataca iniciativas voltadas ao bem-estar social e à proteção ambiental.
Enquanto o Congresso adia a regulação das redes, o TSE terá que definir e monitorar sozinho as regras para garantir eleições justas e limpas
Não nos faltam exemplos de uso nefasto de informações e imagens falsas, acusações infundadas, disseminação de discursos preconceituosos e violentos, e a expansão do negacionismo científico. A internet se mostrou um ambiente propício para a manipulação de crenças: foi nela que vimos crescer mitos como o da Terra plana, das vacinas que transformam seres humanos em jacarés e da famigerada mamadeira ‘erótica’.
O Brasil viu surgir uma miríade de candidatos políticos que cresceram em popularidade nas plataformas digitais, onde os cliques valem mais do que qualquer plataforma política minimamente embasada. O sistema político-partidário, as legislações e as interpretações jurídicas não acompanham as frequentes mudanças e estratégias nas redes sociais.
Hoje, para saber se um candidato tem chances reais de ser eleito, verifica-se suas redes sociais. Senadores fazem enquetes em seus perfis sobre temas que discutem na tribuna, em tempo real. Cada vez mais, os debates de candidatos, tradicionalmente realizados na televisão, ganham dimensão de arena com “revelações bombásticas” feitas em sincronia nas redes sociais.
O processo eleitoral de hoje é muito mais estruturado pela internet do que pelos ritos comuns até o final do século 20. Um “candidato influencer” opera em uma lógica que ainda não foi abarcada pela legislação. A boca de urna se tornou “boca de zap”, “boca de reels”. Candidato bom sabe fazer dancinha de TikTok. Onde está o debate político? Para que lado foi a lisura do processo em tempos em que a grana decide a urna através de anúncios e impulsionamento? Precisamos fazer uma reflexão crítica sobre as redes sociais. Hoje, a fake news usa terno e circula pelos corredores das casas legislativas e do executivo em todo o país.
É nas redes sociais que o playboy herdeiro se torna o candidato João trabalhador, que mortos são ressuscitados em vídeos de apoio, e que candidaturas populares são atacadas sem chance de defesa. Nos últimos anos, vimos a ascensão de agências de marketing político onde profissionais habilidosos desenvolvem personas para qualquer candidato. Esses jovens homens brancos da Faria Lima assumem qualquer personalidade em tempos de eleição.
Nesse cenário, atuam candidatos como Pablo Marçal, coach de internet com milhões de seguidores, que sai do anonimato político para concorrer à Prefeitura de São Paulo, pautado apenas por discursos reacionários e acusações infundadas. Certo de que essa cartilha lhe renderá cliques, citações na mídia e até processos jurídicos, ele segue a máxima: “Falem mal, mas falem de mim.”
No país onde desinformação e memes ruins elegeram o pior presidente da história, precisamos aprofundar o debate sobre o sistema político. É preciso inovar com responsabilidade, respeitando a liberdade de expressão e protegendo-nos dos riscos que essas tecnologias trazem. Essa deve ser a tônica de uma legislação concisa que abrace a nova realidade.
Enquanto os parlamentares adiam a regulação das redes e as big techs tentam desqualificar o debate público, vendendo a ideia de que regular é censurar, o Tribunal Superior Eleitoral terá que estabelecer e monitorar sozinho as regras de uso das ferramentas tecnológicas para assegurar eleições limpas e justas para todos os candidatos e eleitores.
Não será tarefa fácil. Manter a democracia em funcionamento, equilibrando liberdades e regras, nunca é simples. Menos ainda em tempos em que as eleições assumem contornos de paredão final de reality show.