Neste 16 de agosto, damos início a mais um período eleitoral, com a abertura oficial das campanhas para Prefeituras e Câmaras Municipais em todo o Brasil. Como tem sido recorrente nos últimos 40 anos, a religião, especialmente o cristianismo — com destaque para o evangélico —, continua a ocupar um lugar central na identidade dos candidatos e nos temas debatidos durante as campanhas.

Muito tem sido discutido sobre o protagonismo dos evangélicos na cena pública nacional nas últimas décadas, e sobre os equívocos de compreensão que muitas vezes acompanham esse fenômeno. No entanto, o ativismo católico ultraconservador dos últimos anos não recebe a mesma atenção. Ainda são poucas as pesquisas que o investigam a fundo. Entre essas poucas, destacam-se os estudos conduzidos e divulgados pelo Instituto de Estudos da Religião, o ISER, que exploram o reacionarismo católico recente, com ênfase nos movimentos neoconservadores classificados como “catolicismos jurídicos”, que se posicionam contra os direitos de gênero.

No entanto, mais do que apenas analisar o papel da religião nos processos eleitorais, este artigo tem como objetivo destacar alguns pontos de atenção para as eleições municipais de 2024. A análise se baseia em pesquisas realizadas em pleitos anteriores e no acompanhamento de distintos grupos cristãos nas eleições deste ano.

Baixa dos nomes de urna com títulos religiosos em 2020

Títulos religiosos, como pastor(a), bispo(a), missionário(a), irmã(o), padre são frequentemente utilizados por candidatos que recorrem à religião cristã de forma explícita durante suas campanhas eleitorais. No entanto, uma pesquisa do ISER sobre as eleições municipais de 2020 revelou um dado interessante: apesar de um aumento de 24% no uso de nomes religiosos por candidatos em comparação com 2016, houve uma queda de 14% no número de eleitos que utilizaram esse recurso em 2020, em relação às eleições municipais anteriores.

De “evangélico” a “cristão”

O apelo ao termo “cristão” de forma não específica, como identidade de candidatos em campanha, foi amplamente utilizado nas eleições de 2020, segundo o ISER. Essa estratégia é avaliada como uma maneira de ampliar o alcance dos candidatos, englobando tanto evangélicos quanto católicos, além daqueles que se identificam como cristãos, mas não frequentam uma igreja específica. Um ponto que chamou a atenção em 2020 foi a alta incidência de candidatos ligados a igrejas comumente classificadas como evangélicas, como a Assembleia de Deus e a Universal, bem como à Igreja Católica, que optaram por abandonar a exposição de sua identidade religiosa específica em favor de uma identificação como “cristãos não determinados” durante a campanha.

A nacionalização das municipais

As disputas acirradas nos últimos dois pleitos nacionais entre a extrema-direita e a esquerda aumentaram a importância das eleições municipais, que passaram a ser vistas como uma espécie de “prévia” das eleições nacionais. A conquista de prefeituras e vagas nas câmaras das capitais e grandes cidades tornou-se um passo estratégico para ocupar governos estaduais, o Congresso e, eventualmente, a presidência. Esse cenário leva candidatos da extrema-direita, que utilizam a religião em suas campanhas, a evitar a discussão de temas relevantes para as cidades — como infraestrutura urbana, saúde, educação e transporte público… Em vez disso, esses candidatos mantêm uma estratégia de captação de apoio eleitoral baseada em assuntos que geram controvérsia, debate e apelo às emoções religiosas.

Como resultado, temas que não estão sob o poder de decisão de prefeitos e vereadores, como aborto, pedofilia, direitos LGBTQIA+, armamentismo, punição a criminosos, ideologia na educação pública relações internacionais, entre outros, acabam ganhando mais espaço nas campanhas desses candidatos. Isso ocorre em detrimento das questões que realmente importam aos eleitores na hora de decidir seu voto.

STF, educação e ‘cristofobia’: desinformação como estratégia

Com a ascensão das redes digitais e os interesses político-financeiros das grandes empresas de tecnologia, que operam sem regulação, a desinformação sistemática nas eleições tornou-se inevitável. Isso é evidente pela persistência e repetição de temas desinformativos nos discursos eleitorais durante as eleições nacionais e estaduais de 2018 e 2022, bem como nas municipais de 2020. A estratégia é explorar temas que ressoem com as visões de mundo das pessoas, incentivando-as a compartilhar mensagens, rejeitar certos candidatos e apoiar outros. Os grupos religiosos, em particular, são tanto alvos quanto fontes significativas de desinformação eleitoral, pois lidam diretamente com crenças. Em 2024, o uso amplo da inteligência artificial deve dificultar ainda mais o enfrentamento a esse problema.

O Coletivo Bereia, que realiza checagem de conteúdo em ambientes digitais religiosos, observou que, desde o segundo semestre de 2023, houve um aumento na quantidade de material falso publicado sobre o tema educação, em comparação com os anos anteriores (2021 e 2022). A campanha para as eleições dos Conselhos Tutelares, em 2023, já havia sido marcada por essas ênfases.

Há líderes que instrumentalizam a religião para projetos de poder? Sim. Mas, nas bases, está a fé de muitas pessoas sinceras

Outra ênfase nas eleições de 2020 e 2022 foi o tema da “cristofobia”, caracterizado por um discurso alarmista sobre uma suposta perseguição aos cristãos no Brasil. Esse discurso incluía a ideia de uma ameaça iminente de silenciamento da pregação e fechamento de igrejas, atribuída a grupos de esquerda. O termo “cristofobia” continua sendo usado pela oposição e por políticos com identidade religiosa sempre que são criticados por seus ataques públicos a direitos, especialmente os relacionados à sexualidade, à reprodução humana e às comunidades tradicionais.

Os ataques ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral e seus ministros, assim como as mentiras sobre a segurança das urnas eletrônicas, que culminaram na violenta invasão a Brasília em 8 de janeiro de 2023, continuam a ser disseminados. A entrada do proprietário do X/Twitter nas discussões amplificou ainda mais as campanhas de desinformação sobre a Justiça Eleitoral em 2024, agora também com o apoio de parte da imprensa.

Religião, democracia e o desafio da pluralidade

Candidaturas com identidade religiosa não representam um ataque à democracia e ao Estado laico. São legítimas e fazem parte do Estado Democrático de Direito, assim como as candidaturas de qualquer outro grupo que compõe o mosaico de identidades de uma democracia plural. Isso reflete a dinâmica da cultura brasileira, na qual as religiões desempenham um papel importante na organização e no significado da vida.

A laicidade do Estado no Brasil sempre foi marcada por avanços e retrocessos, em parte devido à presença da Igreja Católica na política por mais de 500 anos. Nesse contexto, a presença crescente dos evangélicos na esfera pública, tanto institucional quanto digital, pode até ser vista como um sinal do próprio avanço da democracia e da pluralidade religiosa, apesar das ambiguidades que isso acarreta. Nos últimos anos, por exemplo, a participação pública de religiões de matriz africana, no enfrentamento à histórica discriminação que enfrentam, tem sido um progresso importante.

O que precisa ser enfrentado e denunciado é quando apenas um grupo monopoliza a voz e tenta impor seus valores no espaço público, pois isso não é democracia. A garantia do debate e da expressão de diferentes vozes é fundamental em um contexto democrático.

Além de enfrentar a desinformação e os discursos de ódio, que muitas vezes não apresentam propostas concretas para a vida nas cidades, é necessário também enfrentar e denunciar os abusos no processo eleitoral, conforme previsto em lei. Isso inclui campanhas explícitas por votos realizadas, sem escrúpulos, em templos religiosos durante cerimônias.

Em conclusão: há líderes que instrumentalizam a religião para seus projetos de poder em campanhas eleitorais? Sim, existem, e eles devem ser questionados e denunciados. Mas é importante lembrar que, nas bases das igrejas, estão a fé, as crenças, os sonhos e as esperanças de muitas pessoas sinceras, que acreditam na presença de Deus em tudo isso. Por isso, antes de qualquer ação de enfrentamento dos abusos religiosos nas eleições, é fundamental buscar informação e reflexão para superar padronizações intolerantes.

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Last Update: 15/08/2024