Nicolas Maduro, o presidente venezuelano que disputa a reeleição. Reprodução

Uma coisa me parece certa, leitor ou leitora: é fundamental entender que a Venezuela sofre a cobiça dos Estados Unidos e outras nações imperiais. Para elas, o que interessa é o acesso o mais livre possível aos imensos recursos naturais venezuelanos, petróleo e gás destacadamente. E para esse fim nada melhor, nada mais eficaz do que ter em Caracas fantoches e títeres, como os da oposição a Nicolás Maduro.

Estou sendo repetitivo? Talvez. Mas, como dizia um economista, o que não é repetido com insistência permanece rigorosamente inédito.

Cabe reconhecer, claro, que o presidente Maduro às vezes toma decisões duvidosas, para dizer o mínimo. Um exemplo marcante: a pretensão de incorporar à Venezuela mais da metade do território da Guiana. Isso criaria uma confusão na América do Sul e, mais amplamente, nos outros países da América Latina e do Caribe. A América do Sul é uma região de paz desde a Guerra das Malvinas em 1982 e precisa continuar assim.

Uma guerra entre a Venezuela e a Guiana não abriria caminho para uma intervenção americana direta? Não é exatamente isso que queremos evitar? Maduro agredir a Guiana equivaleria à decisão fatídica de Saddam Hussein de invadir o Kuwait em 1990. O Brasil nunca poderia endossar um avanço da Venezuela sobre outro vizinho nosso. Isso não interessa ao Brasil, não interessa a ninguém.

Contudo, isso não influi sobre o que vai escrito aqui e nem interessa agora. O que queria dizer é que, à distância, no meio de uma guerra de informações, é muito difícil determinar quem está mentindo e quem, dizendo a verdade sobre o resultado das eleições venezuelanas. Alguém tem credibilidade para falar sobre isso? A oposição provou algo? O governo provou?

Quem tem moral para falar em democracia?

Não vamos perder de vista que diversos países que se arvoram a opinar não têm moral nenhuma para interferir nas eleições da Venezuela – ou de qualquer outro país. Onde existem eleições realmente confiáveis? Nos Estados Unidos? Francamente! Para começo de conversa: alguém entende o sistema eleitoral americano? Parece que havia por lá uma dúzia de sujeitos que o compreendiam perfeitamente e sabiam explicá-lo, mas estão todos mortos ou entrevados.

A complexidade do sistema americano favorece manipulações. Há suspeitas recorrentes e até evidências de eleições fraudadas. E o sistema ainda produz absurdos arrematados – como a vitória na eleição presidencial de um candidato com menos votos do que o adversário. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2016, quando Hillary Clinton venceu no voto popular e perdeu para Donald Trump no colégio eleitoral onde votam delegados. Poucos no exterior sabem que não há eleição direta nos Estados Unidos.

Sem falar no nível estarrecedor de corrupção política. O que eles têm nos Estados Unidos, como dizem os próprios americanos, é o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar. Uma plutocracia, portanto, não uma democracia. Se o leitor ou leitora me permite o lugar-comum, direi que as acusações americanas à Venezuela devem suscitar o famoso bordão: “macaco olha o teu rabo!”.

Vou mais longe e entro aqui, por um instante, em terreno pantanoso. Afinal, a democracia é mesmo um valor universal, como se afirma com frequência? Ou está entre aqueles conceitos gerais e vazios que Nietzsche chamava de “a última fumaça da realidade evaporada”? O risco de recorrer a essa noção de universalidade é o de conduzir à ideia de que existe um modelo único de democracia – provavelmente aquele que os países do Ocidente Político (ou Norte Global) praticam ou dizem praticar e querem exportar para todos os cantos do planeta. Não estamos diante de mais um embuste da chamada “comunidade internacional” – o grupo formado por Estados Unidos, Canadá, União Europeia, mais alguns países europeus, Japão, Coreia do Sul, Austrália e outros penduricalhos? Comunidade que inclui apenas cerca de 15% da população mundial!

Deixem, portanto, a Venezuela resolver sem interferência estrangeira os seus problemas políticos e econômicos! Problemas esses que foram criados, recorde-se, em larga medida pelas sanções aplicadas há muito tempo por Estados Unidos e seus satélites europeus. Menciono um só exemplo: as reservas internacionais e os ativos líquidos da petroleira estatal venezuelana foram congelados e roubados por americanos, ingleses e outros. Pirataria, não há outra palavra!

As dificuldades da economia da Venezuela refletem, também, má gestão por parte dos governos Chávez e Maduro, não há dúvida. Mas um peso enorme, talvez preponderante, deve ser atribuído às numerosas e sistemáticas sanções impostas à Venezuela. Na verdade, é grande a lista de países que foram ou estão sendo sancionados pelos Estados Unidos junto e seus satélites – entre muitos: Irã, Síria, Afeganistão, Iraque, Líbia, Cuba e, mais recentemente, Rússia e China. Justamente daí é que vêm a desdolarização e os planos, ainda embrionários, de criação de uma moeda de referência dos BRICS como alternativa ao dólar.

O ex-chanceler Celso Amorim enviado à Venezuela pelo governo brasileiro para acompanhar a eleição disputada por Maduro. Reprodução

Papel do Brasil

Qual o papel do Brasil nesta quadra? Muitos, na direita bolsonarista, na direita neoliberal e até na esquerda, querem que o governo brasileiro se intrometa, condene as eleições venezuelanas e se distancie ou mesmo rompa com o “ditador” Maduro – epíteto raramente aplicado aos ditadores ou autocratas de países simpáticos ao Ocidente. Um exemplo: Arábia Saudita. Outro: Ucrânia. Volodymir Zelensky suspendeu as eleições em razão da guerra, o que supostamente legitimaria a decisão. Ora, o que enfrenta a Venezuela, há muitos anos, senão uma guerra econômica e financeira patrocinada pelo Ocidente?

O Brasil dar palpites sobre a Venezuela seria um grande erro, no meu modesto entendimento. A Venezuela é um dos principais países latino-americanos, tem extensa fronteira conosco e importantes laços econômicos. Esses laços só não são maiores, recorde-se, porque a Venezuela foi suspensa do Mercosul, em 2017, no tempo de Michel Temer no Brasil e Maurício Macri na Argentina.

Vejam como foi escandalosa a decisão: o governo golpista de Temer teve a cara-de-pau de invocar a “cláusula de democrática” do Mercosul (um dos muitos legados sofríveis do tempo de Fernando Henrique Cardoso) para suspender a participação da Venezuela no bloco. No governo Lula, as relações diplomáticas foram retomadas. Porém, que se saiba, nada se fez até agora para readmitir o país no Mercosul. Seria mais importante trazer a Venezuela de volta do que ficar promovendo acordos neoliberais e danosos do Mercosul, herdados do governo Bolsonaro, como os acordos com a União Europeia, com a área de livre comércio do resto da Europa, com a Coréia do Sul e com o Canadá.

Uma palavra final sobre um aspecto central da questão. Posso estar enganado, mas até onde se pode perceber os Estados Unidos e a oposição venezuelana fantoche dificilmente derrubarão Maduro. O Brasil vai permitir que a Venezuela caia nos braços da China e da Rússia? Pragmaticamente, não nos cabe ao Brasil reconhecer a continuação do governo Maduro?

Opinião controvertida, bem sei. Mas questões decisivas não são sempre objeto de controvérsias?

Paulo Nogueira Batista Jr: O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição, 2021.

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Última Atualização: 15/08/2024