O recém-lançado álbum E o Tempo Agora Quer Voar (2024), de Alaíde Costa, é o segundo volume da trilogia iniciada com O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim (2022). Ambos trazem composições feitas especialmente para a cantora.
“Tem umas músicas realmente bem diferentes daquilo que eu cantava”, diz Alaíde, em entrevista a CartaCapital, por telefone, comparando esses volumes a outros, anteriores. “Mas meu estilo continua o mesmo. Não mudei minha forma de cantar.”
Os dois trabalhos de Alaíde Costa, produzidos por Emicida, Pupillo e Marcus Preto – um terceiro está previsto para sair em 2026 –, reúnem músicas de autores consagrados, como Caetano Veloso, Nando Reis, Fátima Guedes, Ivan Lins, João Bosco, Erasmo Carlos e Ronaldo Bastos.
A marca do projeto é a excelência dos arranjos, que buscam valorizar a talhada voz da artista com 70 anos de carreira e 88 de vida. “Gente que admiro mandou música para eu gravar”, diz ela, que se vê como se vivesse, nos últimos tempos, o auge de sua trajetória.
Algo semelhante acontece com sua colega de ofício Áurea Martins que, aos 84 anos, também vive o melhor momento na música. Após Senhora das Folhas (2022) e Áurea Martins e João Senise Celebram Sinatra & Jobim (2023), a intérprete está concluindo um disco com o compositor e pianista Cristóvão Bastos.
“Não me considero uma cantora de bossa nova nem de samba. Meu gênero preferido é o samba-canção. Minha maior gratidão é a noite. Se não fosse ela, eu não seria a Áurea”, afirma em entrevista, também por telefone, a CartaCapital.
Senhora das Folhas caminha por canções ligadas às rezas e crenças. A impecável seleção de músicas em torno do tema foi realizada por Renata Grecco, diretora artística do álbum. “Nunca tinha feito homenagem aos meus ancestrais”, diz Áurea.
Mais de dois anos depois do lançamento, a cantora segue fazendo shows do disco, que chegou a ser indicado na categoria de Melhor Álbum de Raízes em Língua Portuguesa do Grammy Latino de 2022.
O fato é que os álbuns recentes de Alaíde Costa e Áurea Martins propiciaram o reconhecimento mais amplo, e tardio, de carreiras há muito tempo consolidadas.
Para citar apenas um trabalho de cada intérprete, os discos Coração (1976), de Alaíde, com produção musical de Milton Nascimento, e O Amor em Paz (1972), de Áurea, com o Tamba Trio, são grandiosos. E uma marca que ambas têm em comum é a coerência.
“Gostaria que se lembrassem de mim como alguém que comeu o pão que o diabo amassou. Pelo menos, chegou nossa hora”, diz Alaíde
“Não achei graça nenhuma quando me propuserem cantar Serenata do Adeus (Vinicius de Moraes) em ritmo de iê-iê-iê”, diz Alaíde, relembrando um episódio da década de 1960 que, vira e mexe, menciona em entrevistas. “Paguei um preço bem caro por não fazer concessão. Fiquei muito tempo sem gravar.”
Pouco antes, a cantora participara dos famosos encontros dos quais emergiu a bossa nova. Mas, ao contrário do que aconteceu com seus colegas de roda de violão, quase todos músicos nascidos na privilegiada Zona Sul do Rio de Janeiro, ela não alcançou projeção internacional.
“Teve preconceito racial. Excluíram a gente”, diz, sem meias-palavras, Áurea Martins, que conheceu Alaíde Costa quando ambas faziam parte do cast de cantores da Rádio Nacional, no começo dos anos 1960. “Considero eu e Alaíde muito fortes. O que a gente aguentou não foi mole.”
A fala de Alaíde ecoa a da colega. “Gostaria que se lembrassem de mim como alguém que comeu o pão que o diabo amassou”, enfatiza, para em seguida mencionar Áurea. “Ela está começando a ser reconhecida agora, depois de tanto batalhar. Assim como eu, ela cantou muito na noite para sobreviver – fez isso até mais do que eu. Não desistir de seu sonho é muito bom. Pelo menos chegou a nossa hora.”
Áurea conta que começou a prestar atenção nas interpretações da colega no rádio com as músicas do Johnny Alf, antes mesmo de tê-la conhecido pessoalmente: “Fiquei apaixonada”. Cantor, compositor, pianista e um dos poucos músicos admirados por Tom Jobim, Johnny Alf (1929-2010), que era negro, também sofreu preconceito.
Embora tenha tido grande importância na bossa nova, ele é pouco lembrado na história da música brasileira. O disco E o Tempo Agora Quer Voar é dedicado a ele. “Gostaria demais que ele ainda estivesse aqui. Foi uma pena não ter sido reconhecido quando merecia”, diz Alaíde.
Áurea, por sua vez, tem um formato de show dedicado a Alf que, volta e meia, retorna aos palcos: “Trabalhei muito abrindo seus shows. Ele morou na minha casa quase dois anos. Tenho admiração por ele desde que eu era crooner de subúrbio”.
Alaíde e Áurea se apresentaram juntas em algumas ocasiões, mas foi numa turnê em homenagem a Elizeth Cardoso, Elizethíssima, iniciada em 2014, que fizeram mais sucesso em dupla. Uma coisa que as alegra, além do reconhecimento, é o fato de haver, na plateia dos shows, um público jovem.
“Está bem diferente do que acontecia antes”, diz Alaíde, como se desse a deixa para Áurea: “Acho muito legal isso de a gente influenciar os mais jovens”. Além de grandes cantoras, as duas são hoje exemplo de resistência e vitalidade. •
Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Resposta ao tempo’