Tudo às claras, como todas as coisas corretas são feitas?

por Helena Fernandes

Sabemos que o diabo mora nos detalhes. De todos, o que mais me chamou a atenção no conjunto de textos dessa autoproclamada “revelação” da Folha sobre o que seriam procedimentos irregulares de Alexandre de Moraes no inquérito das fake news, que incriminaram aliados de Bolsonaro, foi uma frase do artigo de Rainer Bragon que aponta o dedo ao ministro “investigador, acusador e julgador”: a prova de que houve ilegalidade no processo é que, do contrário, “tudo seria feito às claras, como todas as coisas corretas são feitas”.

Bem, nesse caso não deveria haver segredo de justiça.

Nem sigilo de fonte.

No entanto, a matéria principal trata dos “diálogos aos quais a reportagem teve acesso”. Se tudo deve ser feito às claras, mereceríamos uma informação mais precisa sobre a origem do material. Ou não?

De modo que não sei se o que o Bragon escreve é fruto de ingenuidade ou cinismo.

Esse detalhe sempre me chama a atenção porque caracteriza a pretensa postura imparcial dos jornalistas, como se não tivessem lado, como se não soubessem as consequências do que publicam.

Mas há outros, mais relevantes, como o que apontou Alceu Castilho: a ênfase nas toneladas de gigabytes que os jornalistas-denunciantes detêm, “colocados antes da notícia, como se fossem a notícia em si”. Mais ou menos como as superproduções de Hollywood, que enfatizam os milhões de dólares gastos no filme, independentemente de considerações sobre a obra.

Letícia Sallorenzo faz conexões muito pertinentes sobre o que parece ser um escândalo fabricado, que não traz nada de palpável mas é noticiado de modo a causar “impressão/sensação de que há algo errado”.

De minha parte, penso que a série de matérias (porque, claro, isso vai render) pretende fazer, mal disfarçadamente, uma (falsa) equivalência entre esse (suposto) escândalo e o outro, verdadeiro, que ficou conhecido como Vaza Jato: mesma metodologia, mesma estética, mesmo jornalista “investigador” paladino da justiça etc. Embora uma coisa não tenha nada a ver com a outra, embora a manchete em papel sobre o uso do TSE “fora do rito” não tenha nenhuma semelhança com procuradores combinando com um juiz as táticas da operação, com chantagens para a obtenção de delações premiadas e assim por diante.

Não tem nada a ver, mas funciona.

Funciona sobretudo como forma de abastecer o discurso de vitimização tão caro aos bolsonarentos, que obviamente já voltaram à carga.

E contam com Elon Musk como aliado, vejam só.

Elon Musk, o campeão da liberdade de expressão.

A Folha costumava se apresentar como “um jornal a serviço do Brasil”. Agora se anuncia como “um jornal em defesa da energia limpa”. Menos mal: sem o compromisso explícito com uma causa cívica, fica mais à vontade para acolher toneladas de gigabytes de denúncias, venham de onde vierem, signifiquem o que significarem, tenham as consequências que tiverem.

Por isso é tão precisa a conclusão do texto do Alceu:

“Jorge Luís Borges torceria seu sorriso irônico até as bordas do cosmos diante dessa situação. Ele adoraria imaginar um infame que declarasse ter a soma de gigantescas bibliotecas hexagonais que contivessem, em si, O Ponto de Todas as Denúncias, o Aleph do Jornalismo, a autoproclamação da reportagem primordial, o moto perpétuo dos terabytes de todos os planetas, até que a liberdade de expressão do infame em defesa arrogante de todos os nazistas fosse saciada em sua plenitude”.

Helena Fernandes é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1981), com mestrado em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (2000) e doutorado em Serviço Social pela UFRJ (2006). Professora aposentada do Departamento de Comunicação Social da UFF desde 2016, ela colaboradora com o Observatório da Imprensa, é pesquisadora do ObjETHOS. No pós-doutorado, dedica-se a averiguar a dinâmica da formação de crenças e convicções nas bolhas virtuais e as dificuldades e possibilidades do jornalismo nesse contexto.

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Última Atualização: 14/08/2024