Movido pela curiosidade despertada pela apresentação estranha de uma competidora da nova modalidade olímpica, o Break Dance, eu li a análise de uma articulista sobre a apresentação desta representante australiana chamada Raygun (nome artístico da professora de dança Rachel Gunn). Concordei com vários pontos de sua abordagem sobre a performance desta break dancer de 36 anos que dá aulas sobre a cultura do hip hop e street dance. Por certo que sua apresentação foi chamativa, exatamente por não parecer muito elaborada. Parecia ser realmente um deboche, alguém que se prestou a “brincar” com os movimentos da dança. Não surpreendentemente, ela tirou zero; não recebeu um mísero ponto sequer por sua rotina de movimentos. Isso não é exatamente uma novidade; houve outros competidores fracassados que mal tinham domínio sobre a arte que representavam, como Eddie no salto de esqui ou o nadador da Guiné Equatorial. No caso de “B-Girl Raygun“, muitas pessoas deram gargalhadas de sua aparente “incapacidade” e falta de talento, mas isso deveria nos alertar para uma mensagem subliminar em sua apresentação. Os mais atentos começaram a suspeitar que poderia haver algo mais interessante por trás da sua dança bizarra.

Conhecendo um pouco mais a história da personagem, vamos descobrir que ela é a autora de um artigo acadêmico intitulado “A cena do Breaking Australiano e os Jogos Olímpicos: As possibilidades e a política da esportificação”. Ou seja; ela lança a pergunta sobre a adequação da “esportificação” do break dance, que nada mais e do que o confinamento da modalidade a uma série de regras e limites que oportunizam uma avaliação objetiva. Desta forma, se o break dance for institucionalizado através das Olimpíadas, é provável que perca a sua própria essência. O seu ponto de vista é que, se esta dança nascida nas ruas e criada pela comunidade negra for forçada a aderir a um código rigoroso controlado por um órgão central (como o COI), perderá inevitavelmente sua essência criativa, contestadora e rebelde. Diante dessa informação, cabe a pergunta: terá sido sua apresentação um ato de profunda rebeldia? Terá ela produzido uma performance de contestação ao próprio evento que participava? Se assim foi, deixo para ela minha admiração.

O mesmo debate ocorreu há alguns anos sobre a institucionalização e regulamentação da função das doulas, auxiliares de parto, que (res)surgiram no cenário do parto e nascimento enquanto movimento social a partir da virada do milênio. Sua aparição foi um sopro de renovação impressionante na atenção ao parto, por duas vertentes igualmente essenciais: em primeiro lugar o suporte afetivo, físico, social e espiritual das gestantes em trabalho de parto, reestabelecendo a ponte que une os aspectos físicos e fisiológicos do parto com os milênios de adaptação psicológica aos desafios de parir. Em seguida, mas não menos importante, está o que se chama efeito Hawthorne. Este fenômeno ocorre quando as pessoas se comportam de maneira diferente ao saberem que estão sendo observadas. Isso pode afetar qualquer tipo de comportamento, desde as atitudes dos moradores da Casa do Big Brother, até o nosso agir banal cotidiano. As doulas, mesmo que reservadas e silenciosas, funcionam como observadores da ação dos médicos, da mesma forma como a entrada dos companheiros e/ou familiares produziu um pouco antes: sua presença ao lado das gestantes fez com que o parto deixasse de ser um evento exclusivo para médicos e demais atores da cena obstétrica.

O efeito Hawthorne explica porque os médicos que trabalham em instituições hospitalares fazendo parte de equipes têm taxas de cesarianas muito menores do que os mesmos médicos trabalhando isoladamente com suas pacientes em hospitais privados. O fato de serem observados e avaliados por seus colegas faz com que suas ações recebam este tipo de contenção; no hospital particular eles não sofrem qualquer tipo de “censura velada”, e suas atitudes médicas tendem a ser mais reguladas pelos seus medos e necessidades pessoais, ao invés de serem guiados pelas evidências científicas e o bem-estar da paciente. O mesmo efeito se faz presente nas câmeras acopladas ao uniforme dos policiais: a queda dramática das mortes causadas por excessos da polícia está ligada ao fato de, usando este equipamento, os policiais sabem que estão sendo observados, e suas ações gravadas para posterior auditagem. Isso produziu uma mudança espetacular, tanto na queda das mortes quanto na brutalidade e violência das abordagens. No caso das doulas, essas duas características – o suporte holístico das pacientes e o efeito Hawthorne – produziram uma profunda mudança positiva na cena obstétrica; ouso dizer a mais importante deste século na atenção ao parto. Porém, a regulamentação do trabalho das doulas tem a potencialidade de produzir uma alteração muito mais significativa, mas na direção oposta. Regulamentar algo da livre expressão afetiva não vai limitar a sua individualização? Haverá elementos contraindicados na fala de uma doula? Quem avalia os movimentos corretos na atenção subjetiva de uma gestante em trabalho de parto?

A partir dessa perspectiva, deixo estas perguntas: Qual a vantagem de institucionalizar, burocratizar e regulamentar atividades humanas tão antigas quanto a própria existência da nossa espécie? É possível criar regras rígidas sobre as expressões artísticas? Por acaso alguém regulamenta o balé? Alguém regulamenta a música? Por que o break dance deveria ter regras, se é da sua origem e da sua essência “quebrar as regras”? A maior visibilidade dessa dança – que ao contrário do atletismo, natação e demais esportes não tem na competição seu elemento inicial – vale o preço de conter, restringir e amordaçar a natural versatilidade criativa desta arte? Se posso dizer que regulamentar as doulas coloca sobre elas uma constrição inadequada e prejudicial, digo o mesmo sobre as regras e limites aplicados a uma expressão artística que nasceu pela necessidade de produzir arte pela exaltação da liberdade nos corpos em movimento.

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Última Atualização: 14/08/2024