Por Daniel Camargos
Edição de Diego Junqueira
Fotos de Fernando Martinho

Do Repórter Brasil

DE MATO GROSSO E PARÁ – Ao longo da BR-163, é comum encontrar facas com a mensagem “Agro é top” cravada na lâmina. No entroncamento com a Transamazônica, em Itaituba (PA), dezenas de caminhões carregados de soja esperam em um posto de gasolina, enquanto no caixa vendem-se porretes com as inscrições “Respeito”, “Diálogo” e “Direitos Humanos”

Essa é a “estrada da soja”, uma das vias mais importantes para o agronegócio na Amazônia. Liga o “nortão” de Mato Grosso aos portos do rio Tapajós, no sul do Pará. Enormes silos de grãos e centenas de bois confinados em abatedouros margeiam a rodovia.

Mas facas e porretes também fazem parte da paisagem. Há bandeiras do Brasil sobre as porteiras, outdoors em apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e propagandas de clubes de tiro. Uma delas combina a imagem do político com o verde-amarelo patriota. O patrocínio é do Clube de Tiro de Sorriso (MT), cidade que mais planta soja no país. “Um povo armado jamais será escravizado”, diz a mensagem ao lado de um Bolsonaro carrancudo.

Repórter Brasil percorreu mais de 6.000 quilômetros, principalmente em estradas de terra, para investigar o lado truculento do agronegócio e seus laços com o bolsonarismo. Essa aliança encontrou solo fértil na Amazônia, onde parte da elite local está envolvida com grilagem de terras, desmatamento ilegal e milícias rurais, e obteve no governo Bolsonaro interlocução para suas demandas. Essa investigação foi feita com apoio do Rainforest Investigation Network do Pulitzer Center.

A rota foi baseada na agenda de encontros de uma figura proeminente do chamado “agrobolsonarismo”: o ex-secretário especial de Assuntos Fundiários Luiz Antonio Nabhan Garcia. Homem de confiança do ex-presidente e um dos principais expoentes da União Democrática Ruralista (UDR), entidade linha-dura do agro, Nabhan Garcia teve papel decisivo na paralisação da reforma agrária nos quatro anos do mandato de Bolsonaro.  

Entre audiências de gabinete e viagens, os 610 compromissos oficiais de Nabhan revelam como ele abriu as portas de Brasília para políticos e produtores rurais acusados de ataques aos povos do campo, como um conhecido fazendeiro de Anapu (PA) investigado por esconder o assassino da missionária norte-americana Dorothy Stang, executada em 2005.

Nabhan também recebeu produtores multados por desmatamento e flagrados por trabalho escravo. Alinhou-se ainda a empresários investigados por financiar a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, como Antônio Galvan, ex-presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), e outros indiciados de Novo Progresso, Xinguara, Marabá e Redenção, também no Pará. 

Durante os quatro anos no cargo, o secretário de Bolsonaro buscou facilitar a vida de empresários acusados de violações. Em discurso a sojeiros de Mato Grosso encrencados na Justiça por apropriação indevida de terras públicas, por exemplo, disse ser possível “regularizar o que está irregular, às vezes”, como vai mostrar a segunda reportagem deste especial.

Já contra os sem-terra, indígenas e quilombolas, Nabhan encampou um discurso belicoso. Em tese, essas populações deveriam ser atendidas por sua secretaria, mas foram tratadas como “invasoras de terras” e deixaram de ser recebidas pelo governo. 

“Não vou aceitar viés ideológico de quem invade propriedade. O Brasil não é uma republiqueta. Quem invade propriedade comete crime”, disse Nabhan à Repórter Brasil em 2019, após ser questionado sobre como seria a interlocução do então governo com esses grupos.

Entrevistado novamente por telefone no início de agosto, Nabhan afirmou que cabe aos produtores rurais avaliarem o seu trabalho ao longo do governo Bolsonaro: “O produtor rural é quem paga a conta de tudo, quem paga a conta do governo. Quem avalia é ele”.

Ao ser informado de que a série de reportagens também vai trazer críticas sobre a política de reforma agrária em sua gestão, ele rebateu: “Não estou preocupado com quem critica ou deixa de criticar”.

Nabhan não ouviu as outras questões. Disse que precisava trabalhar e desligou o telefone. A reportagem ligou novamente, mas ele não atendeu. Foram enviadas oito perguntas detalhadas sobre esta investigação, mas ele não respondeu. Confira aqui a íntegra.

Do faroeste paulista para Brasília

Nabhan Garcia está longe de ser um formulador de políticas públicas. Técnico em zootecnia e agropecuária, mas sobretudo pecuarista e latifundiário, ele ocupou o cargo devido ao histórico à frente da UDR. A organização foi criada em 1985, no interior paulista, para se contrapor ao avanço do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 

Nessa época, Nabhan teve seu nome envolvido em ataques a trabalhadores sem terra do Pontal do Paranapanema, extremo oeste de São Paulo. Ele foi acusado por um fazendeiro, em depoimento à Polícia Federal, de participar da contratação e do treinamento de pistoleiros que feriram oito sem-terra a bala em 1997, durante ação da entidade para desocupar uma fazenda em Sandovalina (SP). 

Nabhan, porém, não virou réu na Justiça. A denúncia chegou até a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Terra (CPMI da Terra), instalada em 2003. Um primeiro relatório da comissão chegou a pedir o indiciamento de Nabhan e de outros fazendeiros pelos crimes, mas a articulação política de deputados da bancada ruralista conseguiu alterar o documento final e livrá-lo.

Expoente do agronegócio na política, Nabhan Garcia fez carreira como líder da União Democrática Ruralista, a entidade linha-dura no combate ao MST (Foto: Reprodução/Redes sociais)
Expoente do agronegócio na política, Nabhan Garcia fez carreira como líder da União Democrática Ruralista, a entidade linha-dura no combate ao MST (Foto: Reprodução/Redes sociais)

Ao longo dos 30 anos de presidência da UDR, Nabhan se aproximou do então deputado federal Jair Bolsonaro. “Desde quando o Bolsonaro entrou no Congresso, eu acompanho ele que, mesmo não sendo produtor rural, sempre defendeu o setor produtivo”, afirmou Nabhan naquela entrevista à Repórter Brasil

Foi ele quem abriu a porteira do agronegócio para o ex-presidente, percorrendo feiras e exposições agropecuárias nas eleições de 2018. A primeira viagem oficial daquela campanha foi um tour pelo interior paulista, iniciado em Presidente Prudente (SP), região de Nabhan, com desfecho na Festa do Peão de Barretos (SP).

A amizade com Bolsonaro fez seu nome ser cogitado para ministro da Agricultura do novo governo, mas Nabhan foi preterido pela bancada ruralista do Congresso, a quem costumava criticar, acusando-a de se preocupar mais com as grandes empresas do agronegócio do que com os produtores rurais. 

Restou-lhe a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários e a simbólica posição de “vice-ministro da Agricultura” – inexistente na burocracia estatal, mas exibida em seu cartão de visitas e em audiências Brasil afora. 

Com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sob seu controle, Nabhan Garcia escreveria um novo capítulo da reforma agrária no país, colocando a política fundiária a serviço do Ministério da Agricultura, algo que só havia ocorrido durante a ditadura militar (1964-85) e no governo do ex-presidente José Sarney (1985-89).

Porretes encontrados pela reportagem em posto em Itaituba
Porretes vendidos em posto de gasolina no entroncamento entre a BR-163 e a Transamazônica, em Itaituba (PA) (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

O fim da reforma agrária

Na primeira semana de governo, o Incra paralisou a reforma agrária, congelando todos os processos de compra e desapropriação de terras. Era um sinal do que seriam os quatro anos seguintes.

Pela primeira vez no século, o Incra deixou de comprar áreas para a reforma agrária, o que ocorreu efetivamente nos anos de 2021 e 2022 – um dos fatores para agravamento dos conflitos no campo

Houve corte de quase 40% nos gastos da autarquia, que caíram de R$ 2,8 bilhões para R$ 1,7 bilhão, entre 2018 e 2022, segundo a plataforma Siga Brasil. O governo também reduziu investimentos na agricultura familiar, que atingiu os menores patamares em 2020 e 2021, segundo a mesma fonte de dados. 

“Ele foi escolhido a dedo para o cargo, pois era explicitamente contra a reforma agrária e os movimentos sociais, e Bolsonaro assumiu dizendo que os sem-terra eram inimigos e precisavam ser combatidos”, analisa o professor da USP Adalmir Leonidio, que pesquisou a violência fundiária no Pontal do Paranapanema.

Na gestão de Nabhan Garcia, a reforma agrária foi reduzida a um programa de distribuição de títulos de propriedade. O foco passou a ser a regularização fundiária, em detrimento da criação de novos assentamentos. “Esse programa é um retrocesso, pois coloca as terras públicas no mercado e facilita a concentração fundiária [por fazendeiros]”, avalia a presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Yamila Goldfarb. 

Rondon do Pará, Pará, Brasil 27-09-2023 Retratos de pequenos agricultores de assentamenro próximo de Rondon do Pará. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Anapu, Pará, Brasil 21-09-2023 O pequeno agricultor Aguinaldo Costa Lima e seu viveiro com mudas de pés de cacau no Projeto de Assentamento Dorothy Stang, próximo de Anapu. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Anapu, Pará, Brasil 23-09-2023 Reunião no Centro de formação São Rafael com o túmulo da freira Dorothy Stang ao fundo em Anapu. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Marabá, Pará, Brasil 27-09-2023 A sindicalista ameaçada de morte Maria Joel Dias da Costa (camisa azul) visitando pequenos produtores rurais, sempre escoltada por dupla de policiais militares em assentamento próximo de Rondon do Pará.  Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Redenção, Pará, Brasil 30-09-2023. Imagens do assentamento Buriti ou Deus é Pai no município Santa Maria das Barreiras. Os moradores não podem ser identificados por motivos de segurança. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Redenção, Pará, Brasil 30-09-2023. Imagens do assentamento Buriti ou Deus é Pai no município Santa Maria das Barreiras. Os moradores não podem ser identificados por motivos de segurança. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Nova Ipixuna, Pará, Brasil 25-09-2023 Pequenos agricultores jogando cartas em barraco de lona e palha no Acampamento São Vinícius em Nova Ipixuna. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Rondon do Pará, Pará, Brasil 27-09-2023 Abacaxis colhidos por Francisco Vieira da Silva, pequeno agricultor de assentamenro próximo de Rondon do Pará. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Rondon do Pará, Pará, Brasil 27-09-2023 Abacaxis colhidos por Francisco Vieira da Silva, pequeno agricultor de assentamenro próximo de Rondon do Pará. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Anapu, Pará, Brasil 20-09-2023 Carne de porco  do casal de agricultores Gleisson Oliveira dos Santos e Valmicélia Souza Santos no seu barraco no lote 109 do acampamento da Gleba Monte próximo de Anapu. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Rondon do Pará, Pará, Brasil 27-09-2023 Retratos de pequenos agricultores de assentamenro próximo de Rondon do Pará. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Anapu, Pará, Brasil 21-09-2023 O pequeno agricultor Aguinaldo Costa Lima e seu viveiro com mudas de pés de cacau no Projeto de Assentamento Dorothy Stang, próximo de Anapu. Série de reportagens do projeto Pulitzer Center sobre violência no campo. Percorremos assentamentos e acampamentos em várias cidades do Mato Grosso e Pará, mostrando como a política do governo do ex–presidente Jair Bolsonaro amplificou a violência na Amazônia. ©Foto: Fernando Martinho
Vozes silenciadas: atacados pelo agronegócio, camponeses são ameaçados e vítimas de despejos ilegais. Sem amparo das forças de segurança, não podem mostrar o rosto, pois sentem medo (Fotos: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

O ‘ogronegócio’ vai a Brasília

A chegada de Nabhan Garcia ao Planalto tem ainda outro elemento: a ascensão do Movimento Brasil Verde e Amarelo no agronegócio brasileiro.

Criado como frente de oposição ao segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), a articulação ganhou força durante o processo de impeachment e se alinhou a Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, explica o antropólogo Caio Pompeia, autor do livro “A formação política do agronegócio” (Editora Elefante, 2021).

Um de seus principais líderes era Antônio Galvan, acusado de financiar a tentativa de golpe de estado contra o governo Lula em 8 de janeiro de 2023 – e “amigo particular” de Nabhan. Procurado pela Repórter Brasil, Galvan não retornou os contatos.

Antes de Bolsonaro chegar ao poder, Galvan e Nabhan mobilizaram fazendeiros e pecuaristas descontentes com as elites do agro, por se sentirem rejeitados por elas, avalia Pompeia.

Segundo o pesquisador, Bolsonaro viu nesse grupo marginal uma oportunidade de apoio político. Uma vez no governo, o ex-presidente encampou pautas que agradavam esses fazendeiros, como a redução de impostos rurais e a flexibilização das políticas ambientais. A esse grupo Pompeia dá o nome de “agrobolsonarismo”.

Já as elites do agronegócio, por outro lado, representadas por associações como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), mantiveram uma postura mais pragmática, segundo Pompeia, negociando pauta a pauta com o governo de extrema direita.

Fachada de comércio e clube de tiro em Marabá, no sul do Pará. Registros de armas de fogo triplicaram no estado entre 2017 e 2022, segundo a PF (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Fachada de comércio e clube de tiro em Marabá, no sul do Pará. Registros de armas de fogo triplicaram no estado entre 2017 e 2022, segundo a PF (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Quem definiu as diferenças entre esses dois grupos do agro de maneira menos sutil do que “agrobolsonarismo” foi a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Durante audiência na Câmara dos Deputados em maio de 2023, ela disse que o governo iria apostar na transição para agricultura de baixo carbono para tirar o agronegócio brasileiro da condição de “ogronegócio”.

Um deputado reagiu, disse que a ministra estava desrespeitando os produtores rurais com o termo ogro (monstro) e que a ministra queria somente “lacrar”. “Eu sou uma mulher preta, pobre, que chegou aqui porque ralou muito, não porque lacrou”, respondeu a ministra. 

O termo já havia sido usado anteriormente pelo diretor do Instituto Socioambiental (ISA), Márcio Santilli, que já foi presidente da Funai e deputado federal.

“Pensei nessa expressão para fazer um contraponto com o agronegócio, que em seu cerne não tem vinculação com expansão da fronteira agrícola, desmatamento e invasão das terras públicas. O ogro é uma parte do agronegócio que cumpre essa função”, explica Santilli. 

Esta reportagem teve apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.

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Última Atualização: 13/08/2024