Recebi a solicitação de nossa CartaCapital para refletir sobre o meu amigo Delfim Netto. Embora tenhamos divergido durante o regime militar, celebramos nossa reconciliação quando compareci ao lançamento de sua candidatura a deputado federal, nos idos de 1986. Desde então, cultivamos em nossas conversas as saudáveis inquietações que, certamente, instigam as mentes inquietas.

As inquietações instigam as mentes inquietas. Essa aparente redundância pleonástica faz-se necessária para revelar as formas de nossas concordâncias e divergências em torno das questões sociais e econômicas. Tampouco desalinhamos nossas preferências pela crítica, sempre pontuada pela ironia.

Há alguns anos, Delfim apresentou nas páginas da CartaCapital uma resenha do meu livro escrito em parceria com Gabriel Galípolo. O tom, entre o elogioso e o irônico, revela a qualidade e o talento literários do professor Delfim.

“Os autores tratam de Marx como visionários, não como dogmáticos, o que lhes ocupa pelo menos 20% do livro. O tratamento é sofisticado. O apoio não é ao dogma, mas à sua antecipação, o que lhes dá a alavanca para ligá-lo à crise financeira de 2008. Nele, Marx desvenda os fundamentos – a forma do valor – a partir da análise da primeira grande crise do capitalismo, iniciada em 1857. Coloquemos as coisas no seu lugar. Marx é hoje um patrimônio da humanidade e não podemos deixá-lo monopólio dos epígonos que o atormentam. Cuidam de Keynes com não menor profundidade. Exploram sua ideia fundamental: a absoluta incerteza sobre o futuro, porque ele não está contido no passado. O mundo da economia não é ergódico. O mercado é incapaz de produzir um equilíbrio social e econômico que corrija os problemas que continuam a acompanhar o capitalismo: a pobreza (a escassez na abundância) para os menos competitivos; a desigualdade (que a financeirização acelerou) e a irregularidade (com ciclos periódicos já apontados por Marx no ‘Grundrisse’). O que ainda não se encontrou é como fazê-lo num mundo em que prevalece o Estado Democrático de Direito.”

No opúsculo de 2002, O Mercado e a Urna, Delfim já havia desenvolvido suas razões a respeito das desavenças entre os mercados e o Estado Democrático de Direito.

“Quando uma política econômica extremamente amiga do mercado financeiro (o ‘mercadismo’) tem que conviver com um sistema político democrático-partidário (a ‘urna’), é preciso muita atenção para manter o equilíbrio social. As extravagâncias do ‘mercadismo’, que com sua pretensão científica acentua as desigualdades e é leniente com o desemprego e a pobreza, tendem a ser corrigidas pelas urnas. Infelizmente, a correção é sempre exagerada, com a ‘urna’ manifestando o voluntarismo dos novos chegados ao poder. Estes, por sua vez, serão punidos pelo ‘mercado’! Para que esse mecanismo de autocorreção ‘mercado’-‘urna’-‘mercado’-‘urna’… convirja para um equilíbrio social aceitável, é preciso evitar os abusos recíprocos. Isso exige sólidas instituições políticas e jurídicas.”

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Última Atualização: 12/08/2024