A morte de Antônio Delfim Netto priva o Brasil do maior de seus economistas. E digo isso na condição de crítico constante de Delfim, enquanto Ministro, menos no período do chamado “milagre econômico” – porque iniciava carreira -, mais no governo João Figueiredo, quando já me soltava mais no jornalismo econômico, no período Jornal da Tarde.

Na época, Delfim salvara o Estadão de uma crise terminal, ao permitir a bancos utilizarem parte dos depósitos compulsórios para um empréstimo ao jornal. Em crise, o Estadão era dirigido por Miguel Jorge e Júlio César de Mesquita, o primogênito de Júlio Mesquita Neto, e o menos preparado da sua geração.

Uma vez por mês, o jornal mandava a Brasília uma equipe de jornalistas, para uma entrevista laudatória a Delfim. A última foi ilustrada de forma constrangedora por uma charge, mostrando Delfim como o Super Homem.

Percebendo o desgosto de Ruy Mesquita – que dirigia o Jornal da Tarde – propus ao Ruízito, seu primogênito:

  • Se seu pai quiser acabar com esse oba-oba com o Delfim, me mande na próxima coletiva.

E fui.

A entrevista foi marcada para as 7 da manhã. Segundo as más línguas, Delfim sempre marcava bem cedo, para pegar os jornalistas com sono.

Nos meses anteriores, passei a desenvolver uma série de temas críticos à política econômica, mas que ficavam restritos ao Jornal da Tarde, diário de enorme prestígio em São Paulo. Recorria aos estudos da ANPEC (Associação Nacional de Pesquisa Econômica) e nas conversas com empresários, exercitando o óbvio: conferindo com os agentes econômicos os movimentos que a teoria buscava induzir neles. Se eles não se comportavam conforme a teoria, o erro estava na teoria.

Esse axioma, por mais óbvio que fosse, jamais foi seguido pelo jornalismo econômico de várias épocas, com raríssimas exceções.

Por isso mesmo, Delfim estava desprevenido, achando que a entrevista seria o padrão bola-levantada das outras vezes. Foi a única razão para ser apanhado seguidamente no contrapé.

Um dos temas levantados foi sobre a nova lei salarial, que reajustava em apenas 70% da inflação semestral os salários maiores.

Outro foi sobre a mudança no financiamento da Previdência. Até então, o Estado entrava com um terço, através de um imposto que incidia sobre gasolina. Delfim eliminou o imposto e dizia que o governo está repondo os recursos através do orçamento. Rebati com um estudo do Luciano Coutinho mostrando que não houve aporte de recursos orçamentários.

Depois, alegou que as taxas de juros estavam em determinado patamar. Disse-lhe que não, baseado em um banco de dados da carta Análise Econômica. Ele desafiou:

  • Mostre.

Disse-lhe que não tinha na hora, mas que mostraria junto com a edição da entrevista.

Terminou com Delfim tentando empurrar otimismo a fórceps:

  • Quando voltarem a São Paulo, voltem de carro para olhar as plantações, o tamanho das frutas, a extensão do plantio.

Disse-lhe que ele estava pretendendo substituir as pesquisas do IBGE pelo “olhômetro”.

A entrevista saiu no Estadão, cortando todos os momentos de aperto de Delfim. Mas no JT conseguimos preservar grande parte dos foras.

A reação de Delfim foi telefonar para Bernard Appy, editor de Economia do Estadão, para perguntar quem era eu. Não pediu minha cabeça.

A década perdida

Nos tempos do “milagre”, o crescimento foi turbinado com aumento do endividamento externo. E a frase preferida de Delfim era que “dívida não foi feita para ser paga, mas para ser rolada”.

Com a primeira crise do petróleo, veio o primeiro alerta para a insustentabilidade do modelo. Ernesto Geisel assumiu com a inflação em alta e os financiamentos externos ameaçados. O grupo de Médici o tratava como “pé frio”. Politicamente, não encontrou condições de reduzir o ritmo de crescimento.

Coube ao Ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen prosseguir em um pesado esquema de endividamento, com Paulo Lyra, presidente do Banco Central, e Fernão Bracher, diretor da Área Externa do BC, insistindo na tese da dívida para ser rolada.

Quando entrou, João Baptista Figueiredo forçou Simonsen a implementar uma nova lei salarial, prevendo reajustes semestrais. A indexação se propagou por todos os setores e a inflação explodiu.

O que Simonsen fez foi pedir o boné e deixar a bomba para o sucessor. E o indicado foi Delfim, até então Ministro da Agricultura de Figueiredo. Por isso mesmo, é injusto atribuir só a Delfim a grande crise dos anos 80.

Mas a forma como reagiu, efetivamente, foi desastrosa.

Delfim aplicou o primeiro choque da era moderna, com um pacote inspirado em seu colega da Faculdade de Economia, Adroaldo Moura da Silva.

Consistia em uma maxidesvalorização de 30%, seguida pelo congelamento de todos os indexadores, correção monetária e câmbio – este sendo corrigido em 0,5% ao mês para estimular as exportações.

Não houve o aumento das exportações. A explicação de Delfim é que os exportadores estavam aguardando o meio por cento se acumular. Na entrevista, expus a Delfim argumentos que já publicara no jornal, a partir de conversas com exportadores. As exportações brasileiras eram negócios de oportunidade. Não dava para segurar o contrato, aguardando a melhoria do câmbio. Ninguém ousava fechar contratos, por não saber se o congelamento da correção monetária seguraria os preços dos insumos.

A partir daí, houve uma política econômica desesperada para apagar incêndios. Com inflação interna, contas externas em pandarecos, Delfim passou a utilizar as estatais para fechar as contas, enquanto esperava a consolidação dos investimentos efetuados durante o 2o Plano Nacional do Desenvolvimento.

Em 1985, o país já completara o seu ciclo de desenvolvimento e as contas começaram a entrar no lugar – com exceção da inflação e das contas externas.

O intelectual

Delfim deixou o governo e, nas décadas seguintes, se transformaria no mais completo pensador econômico do país.

Quando Simonsen morreu, foi saudado como o maior economista brasileiro. Escrevi uma coluna na Folha sustentando que o maior era Delfim.

Simonsen era um esteta da economia, só conseguia pensar a economia teoricamente, dentro de um quadro de equilíbrio. Foi um grande desenvolvedor de soluções específicas, como a própria correção monetária. E só. Tinha parco conhecimento sobre a economia real, nada sobre história da economia.

Delfim era superior por vários motivos.

Primeiro, porque dominava os fundamentos da política monetária e cambial, da mesma forma que Simonsen. Mas toda sua análise tinha por objeto o mundo real e a busca de soluções.

Era um profundo conhecedor de história econômica, com teses sobre o café. Conhecia como ninguém a psicologia dos empresários e dos políticos.

Quando perdeu definitivamente a ambição do poder, abriu espaço para o velho sábio, que tornou-se um guru imprescindível, respeitado por economistas de todas as linhas.

Delfim e Simonsen

LUÍS NASSIF

Publicado em 10 de janeiro de 1997

A cada período, intelectuais de maior renome do período anterior passam a disputar o título de guru das novas gerações. Depois de diluído o pesado maniqueísmo que marcou a discussão econômica, as disputas estão entre os professores Antônio Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen.

Simonsen é o guru de uma espécie de pensamento econômico moldado em torno do mercado financeiro; Delfim, de um pensamento econômico mais industrialista, que inclusive levou-o ser considerado “economista do ano” em votação da Ordem dos Economistas de SP -que sempre lhe foi crítica nos últimos 15 anos.

No poder, foram diametralmente opostos.

Embora dos brasileiros mais inteligentes de seu tempo, não se pode dizer que Simonsen tivesse um projeto de país na cabeça. Tanto que, mesmo sendo intelectualmente mais brilhante que João Paulo dos Reis Velloso -seu colega de ministério no governo Geisel- e tendo com o marechal relações quase filiais, foi incapaz de defender um modelo de economia de mercado que pudesse se contrapor ao dirigista do seu pertinaz colega.

No período posterior, em que uma inflação renitente tornava quase inúteis todos os instrumentos de política econômica, Simonsen recorria exclusivamente à abordagem monetária e cambial para explicar algo tão grandiosamente complexo como a economia brasileira -com setores modernos e anacrônicos convivendo simultaneamente.

Já Delfim, mais do que mero economista, tinha a pretensão de redesenhar o país. Era uma visão sujeita a inúmeras críticas, mas era uma visão.

No primeiro reinado, governo Médici, foi uma espécie de Marquês de Pombal brasileiro. Sonhava criar uma elite industrial que conduzisse o país ao seu destino de glória.

Criou a elite com financiamentos a fundo perdido, incentivos fiscais abundantes, sem seletividade e sem controles e reservas de mercado. O fator competitivo se daria por meio do modelo exportador, que obrigaria essa vanguarda a pautar sua produção por critérios internacionais de qualidade e preço.

No curto prazo, logrou atingir seus objetivos.

Mas, da mesmíssima maneira que no Portugal pombalino, o modelo trazia em si o germe de sua autodestruição -que era a falta de um ambiente competitivo interno, que permitisse a renovação permanente dos empreendedores nacionais.

Havia pouco espaço para os de fora da avenida Paulista.

Sem esse ambiente, o modelo não conseguiria sobreviver ao criador -Pombal ou Delfim.

Mesmo assim, o conhecimento de país e de economia que acumulou é insuperável e vai muito além da mera macroeconomia. Passa pela agricultura, política industrial, a natureza

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Última Atualização: 12/08/2024