É curioso que setores da esquerda brasileira tenham tanta dificuldade em se posicionar diante de uma questão tão simples quanto o golpe de Estado em curso na Venezuela. Nunca houve dúvidas de que o governo chavista fosse de esquerda, popular, mas parece que em tempos de “mal menor” e defesa da democracia, a bússola dos nossos aventureiros políticos está completamente desorientada.
Tarso Genro assume uma posição tão extravagante, para não dizer direitista, mas não podemos deixar de nos surpreender. Em coluna publicada no portal “A Terra é Redonda”, o petista caiu no vazio político. Intitulado “Venezuela – aliança militar-policial-popular”, o artigo se apoia em recente declaração do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, para igualar o governo chavista à oposição golpista como se fosse “farinha do mesmo saco”. Genro, de forma muito eloquente, defende a política que fez naufragar o PSTU no Brasil em 2016.
Genro não quer Maduro, nem Corina. Ambos carecem de legitimidade. Fica a pergunta sobre como ambos foram os candidatos mais votados nas eleições venezuelanas, tanto nos resultados oficiais como nos fraudulentos. Para tirar a legitimidade de Maduro, o petista se apoia em recente declaração do presidente que deu título a sua coluna. Maduro declarou que seu governo seria resultado de uma “aliança militar-policial-popular, de caráter nacional e anti-imperialista, para construir um regime socialista na Venezuela”.
Na cabeça de Genro, a colocação simples de Maduro, que se refere ao controle que o regime político chavista, de origem popular, tem sobre o aparato repressivo e sobre as Forças Armadas venezuelanas, transformou-se numa monstruosidade. Igualou-o a Jair Bolsonaro.
Ou seja, ambos os lados poderiam estar fraudando as eleições e, dada a declaração de Maduro, o governo venezuelano seria a parte que atesta contra a democracia por seu apoio nas Forças Armadas. Acontece que o lado golpista também está apoiado sobre as Forças Armadas, não da Venezuela, mas dos Estados Unidos.
No meio do caminho, Genro ensaia uma análise de classe em que diz que o ex-presidente do Brasil também poderia ter governado sobre a base de uma “aliança militar-policial-popular” se tivesse imposto seu “golpe” em 2022. Aponta corretamente para a classe média ensandecida que compõe a base do bolsonarismo, mas esquece de mencionar que essa classe média não é a base do chavismo, que se apoia nas massas operárias e camponesas da Venezuela.
Mas o que está em jogo aqui não são classes sociais, que aparecem na análise do intelectual petista apenas como um tempero de seus tempos de marxismo. A base de sua argumentação é o mais puro idealismo, a democracia universal que paira sobre todos nós.
Ele continua: “faço esta premissa como ponto de partida de um raciocínio político de fundo, porque a defesa da democracia sem adjetivos de despistes — que garanta a rotatividade no poder, baseada em eleições periódicas com resultados verificáveis – é a barreira mais eficaz para arquivar tanto o caudilhismo militar-policial, como a besta-fera do nazi-fascismo, em alta em todo o globo”.
Vejamos o caso brasileiro. O ilustre Poder Judiciário, que “salvou a nossa democracia”, não tem rotatividade. E se o Poder Executivo federal teve alguma rotatividade, a mesma não pode ser observada nos estados e municípios, exceto se considerarmos a mudança de indivíduos como uma verdadeira mudança de qualidade. Há membros do Poder Legislativo que ocupam seus cargos há algumas décadas. As nossas eleições são de fato periódicas, mas ao contrário das venezuelanas, não tem seus resultados verificáveis, ao menos não ao nível do voto individual.
Não temos democracia aqui em termos “genrianos”, mas o petista prefere se dedicar à crítica do país vizinho, na mira do imperialismo e com um sistema representativo mais robusto que o nosso. Não só isso, recorre a uma verificação “independente” da votação como recurso para pacificar o país. Independente de quem? Do governo venezuelano que o próprio autor reconhece ser fruto “de um processo reconhecido, em todo o mundo, como democrático e que através de sucessivos pleitos desbancou as elites superiores das oligarquias tradicionais, que sequer se preocupavam com a alternância do poder, pois era certo que, nas eleições viciadas, o poder ficaria sempre nas mesmas mãos privilegiadas”?.
Em meio a suas divagações, Genro apela para o velho argumento de que “os tempos mudaram”. Não podemos nos valer da lógica simples de que na Venezuela há um embate entre imperialismo e um governo de esquerda nacionalista, que luta por soberania. Esses seriam conceitos da “Guerra Fria”, já superados. Finalmente, como diz o próprio autor, “por acaso a China, por exemplo, não é a maior nação detentora de títulos públicos do Império Americano?”
Essa declaração demonstra total desconhecimento do petista em relação à etapa do capitalismo em que estamos. Os títulos não dão poder nenhum à China. São, na realidade, uma maldição dado o recente confisco de ativos russos após o início da guerra na Ucrânia. São resultado de décadas de superávit comercial em relação aos Estados Unidos; décadas de superexploração da classe operária chinesa que fizeram com que a China se tornasse o principal financiador da máquina de guerra imperialista, através dos títulos mencionados, problema que o atual governo chinês tenta resolver procurando “desdolarizar” sua economia.
Pouco antes de encerrar seu artigo, Genro busca outra equivalência indevida entre o Batalhão Azov nazista da Ucrânia e os “batalhões de mercenários fascistas” russos. Não sabemos a ideologia de cada membro do Batalhão Wagner, para citar um exemplo, mas sabemos que sua atuação na Ucrânia e em determinados países africanos deu-se contra os interesses imperialistas na região e, portanto, em interesse da classe operária mundial. Sim, porque o enfraquecimento de seu inimigo estratégico fortalece a classe operária. Basta ver a situação palestina onde o Hamas, um grupo de ideologia islâmica, lidera uma revolução popular contra a dominação sionista. Ou haveria alguma equivalência entre a resistência armada palestina e as forças de ocupação sionistas?
“Recontagem e verificação independente, acordo de transição dentro da democracia, novas eleições com ou sem Governo de transição, são algumas das possibilidades para reestruturar a democracia na Venezuela”, conclui Genro após divagações que vão do encontro entre Goethe e Napoleão aos relatos de John Reed sobre a Revolução Russa. Qualquer um desses caminhos é, na verdade, a rota perfeita para a infiltração imperialista no país. Para além da “democracia” de Genro, há a expropriação da burguesia, caminho que o governo chavista deveria seguir para resolver suas crises cíclicas. Essa é a forma real de vencer o fascismo da oposição venezuelana.