Qual o papel desses eventos na promoção, ou redução, da justiça social e da democracia? Quais os custos econômicos, sociais, políticos e ambientais de se receber esse tipo de evento? Quais os interesses envolvidos em sua produção? Quem ganha e quem perde nesse jogo? Essas questões se tornam imperativas para todos aqueles que buscam refletir a respeito dos efeitos desse tipo de evento sobre a cidade.
Em 2012, defendi o conceito de cidade de exceção em tese de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro sob a orientação de Carlos Vainer. Em breves palavras, poderíamos definir a cidade de exceção como resultado do modelo de planejamento e gestão urbana, largamente empregado em cidades de todo o mundo nas últimas quatro décadas, que David Harvey chama de modelo empresarial da gestão urbana.
As estratégias de desenvolvimento sugeridas por esse modelo são sempre direcionadas à atração de grandes investimentos, em detrimento do atendimento às demandas da sociedade. A cidade de exceção se realiza quando os gestores urbanos, na busca de criar um ambiente favorável aos negócios, começam a produzir um conjunto de leis e medidas que flexibilizam a ordem jurídica, política, social ou ambiental vigente.
Os preparativos para os JO 2016 e a Copa do Mundo 2014 no Brasil permitiram, em curto espaço de tempo, que a cidade de exceção se instaurasse em sua forma mais radical e, desse modo, ofereceram os dados ideais para a sustentação de minha tese, mais tarde publicada com o título O poder dos jogos e os jogos de poder: interesses em campo na produção da cidade para o espetáculo esportivo .
Em 2020, atendendo a um desafio da editora Routledge para a publicação do livro Mega-events, city and power, ampliei a aplicação desse conceito a outras cidades que sediaram megaeventos esportivos nas últimas décadas a partir da mesma estratégia de desenvolvimento. Algumas evidências observadas nos preparativos dos JO 2016 determinaram o roteiro de minha investigação. Documentos oficiais do Comitê Olímpico Internacional (COI) e as leis de exceção direcionadas à realização dos JO foram escolhidos como principais fontes da pesquisa.
Para garantir o seu faturamento bilionário, o COI precisa produzir eventos espetaculares e satisfazer às demandas de seus parceiros comerciais, especialmente as redes de transmissão e o seleto grupo de patrocinadores do programa The Olympic Partners (TOP). Os dados oficiais de Paris 2024 ainda estão indisponíveis, mas, de acordo com o último Relatório de Marketing do COI, apenas essas duas fontes lhe renderam 6,8 bilhões de dólares nos JO de Tóquio em 2021.
Focada em agradar a esses parceiros, a instituição que comanda o espetáculo esportivo mundial se vale de toda a sua força simbólica, cuidadosamente construída durante mais de um século, para impor às cidades sedes uma série de exigências. As imposições do COI são devidamente seladas em um emaranhado de regras e diretrizes, expressas em Cartas Olímpicas, manuais de candidatura, contratos de cidade-sede, garantias, códigos de ética e antidoping, dentre outros documentos.
As medidas de exceção, adotadas pelos governantes dos países e cidades anfitriãs, sob o argumento da urgência do cronograma e da necessidade de satisfazer aos compromissos com o COI, acabam por atender também às coalizões pró-crescimento local, que envolvem principalmente políticos, grande mídia, empresas de consultoria e empreendedores privados, dentre os quais se destacam especuladores e promotores imobiliários, grandes empreiteiras, indústria dos serviços e empresas concessionárias.
A organização dos JO no Brasil revelou o potencial desse tipo de evento para viabilizar formas autoritárias de planejamento e gestão urbana, que conferem suporte a uma grande coalizão de interesses entre o capital internacional – representado pelo COI e seus parceiros – e grandes grupos capitalistas que atuam localmente.
Dentre as medidas de exceção adotadas no Brasil sob a justificativa dos JO 2016 destacam-se: isenções de impostos ao COI, a seus parceiros comerciais, à indústria de serviços e da construção civil; quebra de barreiras migratórias para o COI e parceiros; proteção da marca Olímpica e dos parceiros do Movimento Olímpico; leis e estruturas especiais de gestão e poder, com o objetivo de driblar leis e normas que controlam o uso de recursos públicos; leis para garantir a segurança; flexibilidade nas leis urbanísticas e ambientais e condições especiais para facilitar desapropriações e controle dos espaços públicos.
A cidade de exceção para os JO Rio 2016 teve como principais resultados a grande transferência de patrimônio público para a iniciativa privada, a ingerência de empresas privadas no planejamento urbano, a determinação de prioridades do investimento público por interesses privados, o desrespeito às leis urbanísticas e ambientais estabelecidas no Plano Diretor da Cidade e o que chamamos de “assepsia social”, caracterizada pela expulsão e a invisibilização de populações categorizadas como indesejáveis dos arredores das competições olímpicas.
A mudança de parâmetros urbanísticos, sempre votada em regime de urgência, expôs à vulnerabilidade ambiental grande parte da Barra da Tijuca e determinou uma completa reestruturação urbana na área portuária. Em uma edição especial do Jornal dos Economistas sobre as Olimpíadas 2016, publiquei um artigo intitulado A retórica do financiamento privado dos JO 2016, que detalha os mecanismos estabelecidos para a transferência de terrenos públicos a preços muito abaixo do mercado nas Parcerias Público Privada (PPPs) do Porto Maravilha e do Parque Olímpico da Barra da Tijuca, dentre outros exemplos de privatizações do patrimônio público. O uso de recursos da Caixa Econômica Federal para financiar obras dessa última PPP e da Vila Olímpica, com improvável possibilidade de retorno, também se encontra detalhado no mesmo artigo.
Além disso, o consórcio que planejou o Projeto Porto Maravilha foi o mesmo que posteriormente venceu a licitação para a construção de infraestrutura e exploração de serviços na área. Não é mais a cidade que é gerida como empresa, mas a empresa que passa a planejar e gerir a cidade.
A face mais perversa da cidade de exceção no Rio de Janeiro se revelou nas medidas destinadas à “assepsia social” com o objetivo de tornar a cidade mais atraente aos turistas e aos investidores imobiliários. O dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, elaborado pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, em novembro de 2015, aponta a remoção forçada de quase 80 mil pessoas de sua moradia. Além disso, as medidas de proteção da marca Olímpica envolveram desde o controle do espaço público em áreas de uso restrito dos parceiros olímpicos até o recolhimento de material divulgado na mídia que fizesse qualquer menção, ainda que sugestiva, a símbolos ou palavras protegidas.
As operações relacionadas ao que a prefeitura chamou de “Choque de Ordem” envolviam desde o recolhimento compulsório de moradores de rua e menores usuários, até medidas relativas ao comportamento das pessoas em espaço público, perseguição de trabalhadores do comércio informal e restrições no funcionamento das feiras livres.
A preocupação com a segurança justificou a publicação de todo um aparato jurídico, como a lei antiterrorismo, que ainda hoje viabiliza a criminalização de movimentos sociais. A violência policial nas favelas se intensificou no período que antecedeu o evento e teve como um dos casos mais emblemático a ação do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (BOPE) no complexo de favelas da Maré em 2013, que sitiou moradores, invadiu casas, deixando como saldo 10 mortos e vários feridos.
A cidade de exceção no mundo
Uma observação mais detalhada sobre a produção dos JO em outros países revela que a cidade de exceção tem ocorrido em maior ou menor intensidade em todos os lugares que sediaram esses eventos desde os JO de Seul em 1988, quando passaram a ser tratados como estratégia de desenvolvimento urbano. O caráter de exceção não se resume ao conteúdo das medidas adotadas, que muitas vezes tem efeito para muito além dos eventos; ele se expressa, sobretudo, nos processos como são instituídas, principalmente através de decretos, medidas provisórias e leis votadas em regime de urgência, que manifestam uma ingerência direta do poder executivo sobre o ato de legislar.
Os benefícios fiscais e facilidades migratórias concedidos ao COI, as facilidades para especuladores e investidores imobiliários, as remoções forçadas e o controle das liberdades individuais nos espaços públicos têm sido as medidas de exceção mais comuns nos lugares pesquisados.
O Center on House Right and Eviction (COHRE) realizou pesquisas detalhadas sobre a violação de direito à moradia relacionados aos JO em vários países, cujos resultados foram sintetizados em um Relatório Final, que aponta a remoção forçada de 1,5 milhões de pessoas durante os preparativos para Pequim 2008 como o caso mais emblemático.
A criminalização e violência contra os moradores de rua em Atlanta durante os preparativos para os JO de 1996 também recebe destaque no Relatório do COHRE e é confirmada por outros pesquisadores. O controle social nos espaços públicos também tem sido objeto de leis específicas em outros países e são reportadas nos próprios relatórios oficiais do COI. Mesmo os JO de 2000 em Sydney, considerados exemplares por muitos estudiosos, não escaparam ao controle severo desses espaços. Um ato legislativo especial estabelecia normas para comportamento público, nos locais de entorno das competições, e até mesmo proibia aglomeração de pessoas sem justificativa.
Os desgastes recentes sofridos pelo Movimento Olímpico, devido a constantes denúncias de corrupção e de violação de direitos humanos relacionados aos JO, especialmente após as repercussões negativas dos preparativos do evento de 2016 no Brasil, levaram muitas cidades a desistirem da disputa por sediá-los.
Para evitar o aprofundamento da crise, o COI adotou nova estratégia, mudou regras para os processos de candidatura, fez a escolha simultânea de sedes para dois eventos consecutivos, Paris 2024 e Los Angeles 2028 e, logo em seguida, para os JO de 2032 a serem realizados em Brisbane, Austrália.
Além disso, a instituição se tornou mais flexível em relação às exigências de leis específicas para proteção da marca Olímpica e às quebras de barreiras migratórias e impostos.
A cidade de exceção e Paris 2024
Paris foi designada cidade sede dos JO de 2024 através de um projeto de candidatura ousado, que propunha a cerimônia de abertura e grande parte das competições em espaços públicos pela primeira vez na história das Olimpíadas Modernas.
Um evento Olímpico com 95% das competições realizadas em espaços públicos, construções existentes ou instalações provisórias, sem o apelo a grandes projetos de reestruturação urbana e com as garantias de nenhum deslocamento de residentes prometia uma exceção à regra.
A forte carga simbólica da linda cerimônia de abertura realizada sobre as águas do rio Sena e em monumentos de Paris, que acionou temas como a inclusão e a diversidade, e o apelo ao patrimônio artístico e cultural da cidade das luzes, também conhecida como cidade do amor, nos emocionou tanto que, por alguns instantes, acreditamos na promessa de deixar para trás a cidade de exceção.
Em julho de 2024, entretanto, a Liga de Direitos Humanos (LDH) da França publicou um documento que alerta sobre violação aos direitos humanos e às liberdades durante os JO de Paris 2024. Um dos dados mais alarmantes pontuados pela LDH é resultado do relatório realizado pelo Coletivo O Reverso da Medalha sobre um ano de “limpeza social” antes dos JO de 2024.
O relatório revela que cerca 12.500 pessoas em situação de rua, em moradias precárias ou dependentes do espaço público para viver e trabalhar foram expulsas das ruas ou de alojamentos apenas durante o ano que antecedeu aos JO e que muitas delas não poderão retornar a Paris. Alguns desses lugares haviam sido arrendados para assentamentos e os arrendatários buscaram recuperá-los a fim de tirar partido dos altos valores que poderiam receber durante o evento. O relatório também assinala que grande parte dessa população é constituída de mulheres e crianças, que muitos deles são exilados e, dentre esses últimos, alguns foram definitivamente deportados do país.
O documento da Liga de Direitos Humanos também atenta para mudanças na legislação urbanística para atender aos interesses dos incorporadores imobiliários responsáveis pela construção da Vila Olímpica e destaca a violação dos direitos individuais, especialmente no que diz respeito às medidas de segurança expressas na Lei dos Jogos Olímpicos. Dentre as violações autorizadas pela lei, o documento assinala o uso indiscriminado de drones e escaneamento corporal e testes de DNA para prevenção de doping, sem a autorização explícita do interessado.
A LDH também destaca o aparato de segurança instituído com efeito gradual em diferentes zonas da cidade e, de modo especial, na zona de controle máximo, denominada “zona cinza”, que contempla as vias utilizadas para as competições e suas proximidades. O acesso a essa zona está atrelado a um QR code de autorização, cuja obtenção está sujeita a rigorosa triagem que inclui inquérito administrativo preliminar para qualquer tipo de transgressão e consulta a ficha policial de cada requisitante. Além dos trabalhadores e voluntários de apoio aos JO e serviços urbanos (cerca de 60.000 pessoas), os moradores da área também precisam se submeter a essa triagem para ter acesso a sua residência.
Os dados apresentados apenas ilustram a expressão da cidade de exceção atrelada à produção do espetáculo esportivo e as dificuldades de superação desse modelo. As repercussões territoriais das medidas de exceção em diferentes realidades culturais, políticas e econômicas não podem ser desprezadas. Os efeitos da proibição de comércio informal em Londres não poderiam ser iguais àqueles produzidos no Brasil, que tem a informalidade como característica estrutural da sociedade. Por outro lado, a violação da privacidade parece mais escandalosa aos franceses que aos brasileiros.
Embora os fatos apresentados apontem para uma correlação de forças favorável aos integrantes da coalizão, em alguns casos, quando efetivamente mobilizada, a sociedade civil consegue impor alguns recuos à exceção em nome da garantia de seus direitos, tanto em relação ao projeto de assepsia social, quanto em relação às leis de exceção. Em vários lugares, inclusive no Brasil, a mobilização social pode surpreender em sua capacidade de amenizar as consequências perversas de uma estratégia de desenvolvimento que carrega em si o pressuposto primordial de preservação dos interesses do capital.