Eu gostaria de compartilhar com vocês a minha experiência em criar o projeto “Cidade Mulher” (CM) em El Salvador.
Em 2014, eu era a primeira-dama e secretária de Inclusão Social durante o primeiro governo de esquerda em Salvador. Foi uma experiência maravilhosa, que começou a partir de uma rebelião pessoal.
Eu cheguei em El Salvador em 1992, após a assinatura dos Acordos de Paz entre a Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN) e o governo salvadorenho. Deixava o Brasil após 30 anos para iniciar um ciclo importante da minha vida que iria colaborar como processo de reconstrução nacional.
Eu era uma mulher politicamente ativa, mas durante a campanha eleitoral, eu vivi a primeira experiência de indignação. Apesar da minha experiência política e da minha relação muito fluida com a FMLN, eu não era vista como uma mulher politicamente ativa e simplesmente como a esposa do candidato.
Foi ai que comecei a descobrir uma realidade oculta perversa e como as mulheres com identidade política eram vistas como “malvadas”, como “mulheres que querem dominar os seus maridos”. Esta invisibilidade era prudente.
Eu estava grávida do meu primeiro e único filho Gabriel, aos 45 anos em plena campanha e o desafio naquele momento foi desafiador para mim. Trabalhava da segunda à sexta-feira na CEB e no final de semana, acompanhava o meu marido nos comícios.
Cansada de ver disputas por espaços nos palanques, decidi que meu lugar deveria ser ouvir o público que comparecia aos nossos eventos, em sua maioria mulheres.
Em El Salvador, 52% da população são mulheres, que eram super importantes para os candidatos, mas passadas as eleições, elas tornaram-se invisíveis outra vez. Então, sendo parte das “invisíveis”, decidi aprender com elas suas necessidades e foi inegável que o meu estado de gravidez me ajudou a ver com mais sensibilidade a sua realidade, pois a maioria delas assistia aos comícios carregando seus filhos.
A CM é um espaço específico para mulheres onde estavam integradas mais de 17 instituições do Estado salvadorenho, para oferecer às mulheres diferentes opções para alcançar total autonomia. Não existe igualdade sem alcançar três autonomias: A física (que é o acesso a saúde sexual e reprodutiva) a econômica e a política.
A CM consiste em 4 módulos: Saúde Sexual e Produtiva, Prevenção e Atenção à Violência de Gênero, Autonomia Econômica, Cuidado Infantil e Gestão Territorial e do Conhecimento.
Em cada módulo existiam as instituições necessárias para atingir todos os objetivos, por exemplo; Uma mulher que chegasse a CM vítima de violência sexual era recebida no módulo de Atencão à violência. Primeiro ela passava pela sala de transição em crise, onde era atendida por uma psicóloga que a ajudava na estabilização emocional, depois era encaminhada para a medicina legal onde fazia os exames necessários para a coleta de provas, depois tomava um banho, recebia roupas limpas (porque muitas chegavam sangrando) e ai eram encaminhadas a Polícia Nacional Civil (recebida somente policiais mulheres) para registrar denúncia e depois entrar em contato com o Ministério Público onde eram tomadas as medidas legais para registrar a denúncia.
Em seguida, eram encaminhadas para o módulo de Saúde Sexual e Reprodutiva onde eram examinadas por ginecologistas, recebiam medicação gratuita e faziam outros exames como, por exemplo, prevenção de câncer de mama e colo de útero.
Depois, as mulheres tinham a oportunidade de procurar o Módulo de Autonomia Econômica para formação em diversas áreas, e muitas delas de tirar por primeira vez seu documento de identidade. A maior parte dos cursos de formação não eram realizados na sede do CM e, sim, nos territórios para facilitar o acesso das mulheres vítimas da pobreza tempo.
Também decidi implementar nas sedes a Escola de Formação Agrícola onde as mulheres eram ensinadas a cultivar diferentes produtos ao longo do ano em pequenos espaços para o seu consumo ou para venda e todas as mulheres que passavam por aquela escola agrícola eram incentivadas/desafiadas a ensinar a 4 mulheres mais no seu território os métodos que aprenderiam, promovendo assim o cooperativismo entre elas.
Durante o tempo em que as mulheres estivessem nas sedes seus filhos e filhas eram atendidos no módulo de Cuidado Infantil que era dividido em três áreas (recém-nascidos, de 4 a 10 anos e 11a diante), nesses espaços ludicos aprendiam sobre os direitos das crianças, recebiam lanches supervisionados por uma nutricionista, também havia a sala de lactancia materna onde as mães poderiam alimentar seus filhos enquanto estivessem na sede.
O módulo de Gestão e Conhecimento Territorial era um dos meus preferidos porque era nesse que se buscava promover e fomentar os direitos das mulheres. Seu objetivo era fortalecer as organizações locais de mulheres, as redes de defensoras locais, promover a alfabetização em Direitos Humanos e a coordenação territorial inter-institucional das instituições que participavam da CM.
A CM não era um modelo estático, pois a realidade das mulheres também não é. A cada dia descobriamos novos desafios, por isso em 2014 desenvolvemos uma nova estratégia chamada “Cidade Mulher Jovem” que consistia na especialização de serviços que prestamos visando atender às necessidades e situações que afetam meninas e adolescentes, a partir dos 13 anos.
Em setembro de 2011, a CM recebeu a visita do presidente Lula. Foi uma visita cheia de emoções. O Presidente Lula em seu discurso disse: “CM é um espaço muito democrático. Tenho visto muitas coisas boas, mas nunca tinha visto tantos serviços no mesmo lugar.” Foi nessa visita que o presidente me disse que conversaria com a presidenta Dilma para que pudesse conhecer a experiência do CM e assim foi. A presidente Dilma enviou uma delegação a El Salvador para conhecer nosso projeto e a partir dai deu início a Casa da Mulher Brasileira.