do Observatório de Regionalismo

Uma breve análise do MERCOSUL na promoção e proteção da democracia

por Victor Ferreira de Almeida

Tendo em vista que a América do Sul está passando por uma onda de instabilidade política desde a crise financeira internacional de 2008 e a desconstrução da governança regional ofertada pela União de Nações Sul-Americanas, quais são os mecanismos institucionais de proteção da democracia representativa e de promoção da democracia participativa no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)? E de qual modelo de democracia estamos falando? Elaboramos breves notas para responder essas perguntas.

Joseph Schumpeter criticou as doutrinas clássicas que propunham a participação como elemento constitutivo da democracia (PATEMAN, 1992). No lugar da participação, o teórico propunha que democracia seria “aquele arranjo institucional para se chegar a decisões políticas, no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir utilizando para isso uma luta competitiva pelo voto do povo” (SCHUMPETER, 1943 apud PATEMAN, 1992, p. 13). Ou seja, Schumpeter teorizou uma democracia que funciona como um sistema de mercado, em que as instituições possuem apenas o papel de garantir a capacidade das elites competirem entre si pelo direito de representar as massas, das quais se espera passividade pelo bem da estabilidade do regime. Além disso, para Schumpeter esse modelo de democracia exigiria liberdades civis (liberdade negativa[1]) apenas para brancos proprietários. Essa é a democracia elitista competitiva.

Jean-Jacques Rousseau foi o teórico por excelência da participação no processo de decisões políticas (PATEMAN, 1992). Segundo Rousseau, para atingir a igualdade política é necessário a igualdade econômica, não absoluta, entendida como uma relação de interdependência entre pequenos proprietários. Sob essa condição, a participação teria o papel de garantir que os homens (em “O Contrato sexual” Pateman esclarece que Rousseau deliberadamente exclui as mulheres) seriam governados pela lógica da operação da situação política que eles mesmos criaram. Ou seja, “tanto a sensação de liberdade do indivíduo quanto sua liberdade efetiva aumentam por sua participação na tomada de decisões, porque tal participação dá a ele um grau bem real de controle sobre o curso da sua vida e sobre a estrutura do meio em que vive” (PATEMAN, 1992, p. 40).

Mas é em George Douglas Howard Cole que se destaca a busca por uma teoria da democracia participativa para uma sociedade industrializada. Ao contrário de Rousseau, a pedra fundamental do sistema participativo de Cole não é o indivíduo, mas as associações que compõem a sociedade, por sua vez entendida como o “complexo de associações que se mantêm unidas pelas vontades de seus membros” (COLE, 1919 apud PATEMAN, 1992, p. 53). Essas associações se organizam verticalmente e horizontalmente sob o princípio de função com a delegação de poderes soberanos para representantes em instâncias superiores nas organizações políticas e econômicas, de acordo com a necessidade da função geradora da instância.

A partir da experiência concreta da Iugoslávia, Pateman (1992, p. 61) teorizou “uma sociedade onde todos os sistemas políticos tenham sido democratizados e onde a socialização por meio da participação pode ocorrer em todas áreas”. Ou seja, “para essa democracia, o indivíduo deve ser capaz de participar em todas as associações que lhe dizem respeito” (PATEMAN, 1992, p. 54), em especial nas associações econômicas como fábricas e fazendas socializadas.

Ao analisar os regimes democráticos latino americanos após a transição das ditaduras, Guillermo O’Donnell (1994) identifica que, apesar de atenderem aos critérios institucionais para a definição de democracia elitista competitiva, não são democracias representativas mas democracias delegativas. As crises sociais e econômicas herdadas pelas jovens democracias fragilizam as suas instituições, fomentando “clientelismo, patrimonialismo, e corrupção” (O’DONNELL, 1994, p. 59, tradução nossa). A característica fundamental desse regime político é que “[…] quem vencer a eleição para a presidência está com o direito de governar como ele ou ela preferirem, restringido apenas pelos duros fatos das relações de poder existentes e constitucionalmente limitado ao prazo do mandato” (O’DONNELL, 1994, p. 60, tradução nossa). A base política da liderança em democracias delegativas deve ser de massas que, após as eleições, se tornam apoiadoras passivas. Ou seja, o presidente se preocupa mais com o apoio das massas, sem constrangimentos das instituições democráticas.

Vale a pena rever brevemente a crítica autonomista à democracia elitista nos países periféricos do sistema internacional. Segundo Samuel Pinheiro Guimarães (2002, p. 138), “os grandes óbices dos sistemas políticos nos grandes países periféricos são a influência do poder econômico e os custos do processo político, o baixo nível cultural e de informação política de vastas camadas da população, sua exploração demagógica e o uso dos organismos do Estado e do processo legislativo para fins privados”. Ao destacar entraves nas dimensões econômica, cultural e política, poderíamos interpretar que o diplomata estava afirmando que a formação social periférica típica bloqueia a democracia que ele chamou de real. Ou seja, afirma que vivemos sob a “[…] ilusão de viver em uma democracia, em realidade uma plutocracia oligárquica” (GUIMARÃES, 2002, p. 140).

Nesse sentido, vemos uma compatibilidade entre a análise autonomista da democracia competitiva elitista nos Estados periféricos e a autocrítica de Dahl (1985) à teoria de tipo-ideal da poliarquia[2]. Além disso, Guimarães (2002, p. 138) identifica o ponto crucial da limitação de um regime democrático apenas na dimensão política, em que “a capacidade de escolher e de influir nas decisões de consumo como às decisões de investimento, está ‘descasada’ da capacidade de o mesmo indivíduo influir sobre as decisões do sistema político”. Porém, não vai às últimas consequências desse raciocínio que iriam na direção da democracia participativa, nos âmbitos político e econômico, teorizada por Pateman.

Agora analisaremos brevemente os instrumentos normativos e institucionais que o MERCOSUL dispõe para a proteção da democracia representativa e para a promoção da democracia participativa. O protocolo de Ushuaia, de 1998, é o primeiro instrumento específico do MERCOSUL para a proteção da democracia representativa, ratificado pelos membros do bloco e pelos governos da Bolívia e do Chile (PROTOCOLO…, 1998). O protocolo estabelece mecanismos institucionais, como consultas e suspensão da participação no bloco e dos direitos decorrentes, para proteção das instituições democráticas que serão ativados em casos de ruptura da ordem democrática. Também estabelece que a aplicação dessas medidas será condicionada ao consenso entre os Estados membros, exceto do país afetado. Ou seja, é um protocolo para a proteção da democracia competitiva elitista.

O segundo protocolo, de 2011, é mais amplo em seus objetivos e foi assinado por todos os países da América do Sul, exceto Guiana e Suriname (PROTOCOLO…, 2011). Estabelece o compromisso dos signatários com a ordem democrática, entendida como o estado de direito e suas instituições, com os direitos humanos e as liberdades civis. O protocolo também é mais amplo nos mecanismos institucionais desenvolvidos para esse objetivo, contando com consultas imediatas, bons ofícios e “gestão diplomática” permitindo o estabelecimento de comissões de apoio ao diálogo entre os “atores políticos, sociais e econômicos da Parte afetada”. Além desses mecanismos, o artigo 6 propõe um amplo conjunto de sanções políticas e econômicas que podem ser impostas pelos Estados membros do bloco, com proporcionalidade à gravidade da situação e sem pôr em risco os direitos humanos da população e a soberania do Estado afetado. Nota-se que ao promover os direitos humanos, a declaração vai além da proteção das liberdades negativas do primeiro protocolo, protegendo também liberdades positivas, como os direitos ao repouso, lazer, limitação razoável das horas de trabalho, férias remuneradas, um padrão de vida razoável e direito a participar da vida cultural comunidades (BERLIN, 2002; DECLARAÇÃO…, 1948).

No que diz respeito aos mecanismos institucionais para a participação da população no processo decisório do bloco, o MERCOSUL conta com o Foro Consultivo Econômico e Social, com as Cúpulas Sociais e com o Instituto Social. O foro possui a função de permitir a representação da sociedade civil organizada e de empresários, em igual número, emitindo recomendações por consenso aos órgãos decisórios do bloco (PROTOCOLO…, 1994). Por sua vez, as cúpulas foram criadas pelo governo brasileiro em 2006, inspiradas no orçamento participativo e no fórum social mundial, vinculadas à Cúpula de Chefes de Estados e ocorrendo a cada seis meses. “A ideia é demonstrar a importância que os movimentos sociais possuem no acompanhamento de políticas públicas, reafirmando assim, a democracia participativa e solidificando a representativa” (MACHADO, 2014, p. 82). Por fim, o instituto foi criado como “uma instância técnica permanente de pesquisa na área das políticas sociais, objetivando padronizar a coleta de dados e a pesquisa social nos países integrantes do bloco” (MACHADO, 2014, p. 86). O instituto possui o intuito de atender à demanda gerada nas cúpulas por informações mais precisas sobre programas sociais no bloco. Ou seja, esses instrumentos promovem participação no processo decisório apenas de forma política, não atendendo aos critérios da democracia participativa teorizada por Pateman, visto que os meios de produção não estão socializados, porém contribuem para a descentralização do processo decisório do bloco apesar de seus status apenas consultivo.

Em termo de uma consideração geral sobre os instrumentos do MERCOSUL para a proteção da democracia representativa e promoção da participativa, nota-se que, em virtude da conjuntura de alta instabilidade política na América do Sul, talvez na América Latina, é necessário relativizar o alerta de Guimarães (2002) de que a promoção da democracia formal que sob condições de disputa desiguais favorece a eleição de políticos alinhados ao bloco hegemônico internacional, é uma tática favorecida na estratégia do império estadunidense.

Contradizendo essa análise do embaixador, houve apoio dos EUA ao golpe de Estado na Venezuela em 2002; acusações de apoio aos separatistas racistas na Media Luna boliviana em 2008; reconhecimento do neogolpe[3] no Paraguai em 2012; espionagem, planejamento e reconhecimento do neogolpe no Brasil em 2016. Durante o governo Trump houveram ameaças de invasão, sanções econômicas amplas e apoio financeiro substancial a um grupo político na Venezuela; viabilização jurídica, via Organização dos Estados Americanos (OEA), e reconhecimento do golpe civil-militar na Bolívia em 2019. Por outro lado, mais recentemente com Biden houve o reconhecimento do neogolpe no Peru em 2022 e, desde que a democracia estadunidense foi ameaçada por dentro no episódio do capitólio, os EUA recusaram apoiar a tentativa de golpe de Estado de Jair Bolsonaro em 2022 e, por meio da OEA, condenaram a tentativa de golpe militar na Bolívia em 2024.

Ou seja, há uma relativa continuidade da política imperialista estadunidense sobre a América Latina, iniciada na guerra contra o México em 1846 e com arrefecimentos entre 1929-54 e entre 1990-2012, e caso os presidentes eleitos em uma democracia competitiva elitista sejam considerados contrários aos interesses do império, serão alvos de ações de desestabilização. Nesse sentido, o papel do MERCOSUL na proteção da democracia competitiva elitista se mostra necessário e estratégico. No entanto, uma análise da efetividade do MERCOSUL nesse fim ficará para outra oportunidade.

REFERÊNCIAS

BERLIN, Isaiah. Two concepts of liberty. In: BERLIN, Isaiah. Liberty. New York: Oxford University Press, 2002.

DAHL, Robert A. A preface to economic democracy. Berkeley: University of California Press, 1985.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III), 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>.

GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia. 4. ed. Porto Alegre/Rio de Janeiro: UFRGS/Contraponto, 2002.

MACHADO, Jessica Gomes. Integração regional e democracia participativa no Mercosul: uma análise sobre o Mercosul social e participativo. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais). Universidade Estadual da Paraíba, 2014.

O’DONNELL, Guillermo. A. Delegative Democracy. Journal of Democracy, v. 5, n. 1, 1994.

PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

PROTOCOLO DE OURO PRETO. Mercado Comum do Sul, 1994. Disponível em: <https://www.mercosur.int/pt-br/documentos-e-normativa/textos-fundacionais/#>

PROTOCOLO DE USHUAIA SOBRE O COMPROMISSO DEMOCRÁTICO NO MERCOSUL, BOLÍVIA E CHILE. Mercado Comum do Sul, 1998. Disponível em: <https://www.mercosur.int/pt-br/documentos-e-normativa/textos-fundacionais/>.

PROTOCOLO DE MONTEVIDÉU SOBRE COMPROMISSO COM A DEMOCRACIA NO MERCOSUL (PROTOCOLO DE USHUAIA II). Mercado Comum do Sul, 2011. Disponível em: <https://www.mre.gov.py/tratados/public_web/DetallesTratado.aspx?id=dxmiRrluWRS5wpK1lax3qw==>>.

VITULLO, Gabriel Eduardo; SILVA, Fabricio Pereira da. O que a Ciência Política (não) tem a Dizer sobre o Neogolpismo Latino-Americano? Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, Vol. 14, Nº 2, 2020.

[1] Liberdade negativa significa ausência de limitações impostas por humanos sobre outros humanos, geralmente associada aos direitos civis, e liberdade positiva significa o controle sobre a própria vida, geralmente associada a ação do Estado para realização de direitos.

[2] Segundo Dahl (1985, p. 55, tradução nossa), “[…] a propriedade dos meios de produção cria enormes desigualdades entre cidadãos no que tange suas capacidades e oportunidades para participação no governo […]”.

[3] “[…] um tipo de golpe de Estado que preserva certas aparências legais e se processa preferencialmente por meio das instituições vigentes e do cumprimento de ritos formais” (Vitullo; Silva, 2020, p. 33).

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Victor Ferreira de Almeida – Mestre em Relações Internacionais pdlo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Bacharel em Relações Internacionais e Especialista em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal do Pampa. É membro do Observatório de Regionalismo, no qual se dedica ao estudo da governança internacional, da paradiplomacia e da filosofia política.

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Última Atualização: 05/08/2024