Corpos atléticos, músculos que saltam dos uniformes, proporções milimetricamente controladas. Mesmo que nosso calendário esteja bem avançado nos séculos, o imaginário humano do universo atlético ainda remonta ao berço dos Jogos Olímpicos. Em uma rápida busca pelas redes sociais, não é difícil encontrarmos listas e mais listas dos corpos mais admirados, entre fãs e atletas, expostos em posições que não perdem em nada para o catálogo de enormes estátuas de pedra calcária datadas antes de Cristo, abertas à visitação há poucos metros da competição, no famoso museu do Louvre.
Mas, enquanto fechamos os olhos e imaginamos atletas mais parecidos com Hércules, são as Rayssas, Rebecas, Larissas, Jades, Flávias, Júlias, Lorranes e Beatrizes que sobem ao pódio para receber a coroa de oliveiras.
2024 tem sido um ano especial para o esporte brasileiro. Pela primeira vez em nossa história, levamos ao Jogos uma delegação majoritariamente feminina. São 153 mulheres, 55% do total de 276, defendendo a bandeira verde e amarela. Dentre elas, está Rayssa Leal. Uma sensação das ruas e das redes de 16 anos e 1,47m, que se destaca em um esporte historicamente masculino. Tão masculino, que assistir a competição causa uma certa curiosidade. Enquanto uma ala é recheada de homens adultos, são as adolescentes como Rayssa que dominam as disputas femininas. A resposta para esse aparente mistério é, de alguma forma, óbvia. Enquanto eles são instruídos aos esportes radicais desde o momento que largam a chupeta, são elas que precisam de uma coragem e de um esforço extra para serem reconhecidas como corpos que também podem dominar do Park ao Street.
Verdade seja dita: nosso olimpo já vem sofrendo novas ocupações nos anos recentes. Não se passou nem um ano da descoberta brasileira de Martas e Formigas na torcida pelo time canarinho da Copa do Mundo Feminina. Na ginástica, aprendemos a admirar meninas pequenas em estatura, gigantes no talento. De Isabella Hypolito a Rebeca Andrade. Mas ninguém contava que Paris ainda estaria preparando mais uma revolução no nosso imaginário esportivo.
Em Peruíbe, cidade litorânea do estado de São Paulo, uma menina de sete anos de idade foi levada aos seus primeiros treinos de Judô, incentivada pelo pai, atleta aposentado. Das três irmãs, só ela decidiu seguir em frente na carreira e seguir seus passos. Desde pequena, seu corpo sempre chamou atenção. Por ser grande, lutava sempre com os adultos. De alguma forma, ela conseguiu se desvencilhar de duas grandes barreiras que poderiam impedir seu sucesso. Além da dificuldade feminina de acessar o universo das artes marciais, seu corpo fora dos padrões estabelecidos para uma menina de sua idade poderia ter sido uma das grandes pedras no seu caminho. Não foi. E uma nação inteira hoje agradece por não ter sido.
Beatriz Souza, aos 26 anos, subiu em um pódio que valeu por muitos. Sua medalha de ouro na categoria +78kg do Judô inaugura enfim o placar dourado da presença brasileira na França. Mas não para por aí. Essa mulher negra de 135kg também é a sexta brasileira a conquistar uma medalha de ouro em competições individuais e a única a realizar esse feito em sua estreia nos Jogos.
Em um momento em que corpos fora do padrão parecem ter sumido das vitrines, das passarelas, da publicidade e da TV, é no esporte que ele volta a mostrar sua força. E não estamos falando apenas de corpos gordos. Afinal, é impossível esquecer o orgulho brasileiro em acompanhar os atletas que competem no desafio que começa logo em seguida, os Jogos Paralímpicos.
A vitória de Beatriz é mais do que simbólica – é uma mensagem. Uma bandeira clara que nos lembra que o esporte é sim para todos. Que entre Apolo e Zeus, existe um panteão enorme de deuses e deusas prontos para subirem no posto mais alto pódio. E tudo isso começa com uma oportunidade: a de sonhar. Das meninas, negras, com deficiência, gordas, periféricas, que hoje também podem se imaginar não só no esporte, mas, quem sabe, em Los Angeles 2028.